Crianças devolvidas
As famílias que desistem de um projecto de adopção e devolvem as crianças acolhidas devem ser responsabilizadas. Porque as crianças não são uma mera mercadoria que possa ser devolvida.
De acordo com o relatório CASA (Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens), que nos dá um retrato anual da situação de acolhimento de crianças e jovens em Portugal, nos últimos quatro anos 67 crianças adoptadas, ou em processo de adopção, foram devolvidas às casas de acolhimento. E se o número 67 é, já de si, assustador, o termo “devolvidas” não o é menos.
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De acordo com o relatório CASA (Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens), que nos dá um retrato anual da situação de acolhimento de crianças e jovens em Portugal, nos últimos quatro anos 67 crianças adoptadas, ou em processo de adopção, foram devolvidas às casas de acolhimento. E se o número 67 é, já de si, assustador, o termo “devolvidas” não o é menos.
Uma criança acolhida com um projecto de vida de adopção tem, necessariamente, uma história de perdas e vivências negativas, sejam elas de abandono, maus tratos ou negligência. Apresenta, não raras vezes, insegurança, dificuldade em confiar e baixa auto-estima. O mundo à sua volta é, regra geral, percepcionado como ameaçador e perigoso, potenciando sentimentos de vulnerabilidade e desprotecção.
Estas crianças necessitam, por isso, de especial atenção e cuidados e, tal como todas as crianças, de uma família que satisfaça as suas necessidades. No entanto, e atendendo à sua história, a família de que precisam tem necessariamente de se revestir de características muito específicas. Tem de ser uma família especial, capaz de dar reposta aos seus receios, transmitir segurança e reconstruir, aos poucos, a capacidade em confiar. Estas crianças precisam de ajuda para perder o medo de novos abandonos e permitirem-se amar e ser amadas.
Neste contexto, o processo de selecção dos candidatos para a adopção exige-se muito rigoroso, por forma a avaliar adequadamente as motivações e as competências para o exercício da parentalidade. Sobre esta questão em particular, e por ter integrado o grupo de missão conjunta com o Instituto de Segurança Social para a intervenção do psicólogo na Segurança Social, sei que o processo de selecção é, de facto, exigente e minucioso. Não obstante este rigor, nenhum psicólogo tem uma bola de cristal que lhe permita prever o futuro e antecipar uma possível adopção mal sucedida.
Estamos também perante processos complexos e muito desafiantes. Por maior e mais genuína que seja a motivação de quem decide adoptar, e por mais recursos que possam existir, é natural que surjam dúvidas e dificuldades. Muitas vezes, quem adopta idealiza uma parentalidade cor-de-rosa, isenta de qualquer tipo de obstáculos, e que em nada se assemelha com a realidade. Frequentemente, estas crianças testam os limites até à exaustão, ao mesmo tempo que adoptam comportamentos agressivos ou desajustados. Outras refugiam-se no seu mundo interno, quantas vezes obscuro e cheio de fantasmas, com medo daquilo que poderão encontrar cá fora.
Estas crianças e famílias precisam, efectivamente, de um acompanhamento sistemático e continuado ao longo do tempo, assegurado por equipas multidisciplinares que se mantenham na retaguarda. Não nos podemos limitar, no entanto, a esperar que as famílias peçam ajuda já em crise e, tantas vezes, tarde demais. Cabe-nos antecipar as situações de risco e intervir numa lógica sobretudo preventiva. Em paralelo, as famílias que desistem deste projecto e devolvem as crianças devem ser responsabilizadas. Porque as crianças não são uma mera mercadoria que possa ser devolvida.