Eis a cidade no limbo do Porto/Post/Doc
Num ano estranho, o festival propõe a partir de segunda-feira um fascinante programa temático sobre A Cidade do Depois que vai das Fontainhas de Pedro Costa à Los Angeles do cinema independente americano.
Por esta altura, já podemos dizer que é estranho ir a um festival de cinema no meio de uma pandemia. Porque muito do que faz o “ambiente” de um festival – os encontros, as conversas, a sensação de comunidade – se perde quando temos todos de estar “socialmente distanciados”, protegidos contra o malfadado vírus que veio trocar as voltas ao ano de 2020.
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Por esta altura, já podemos dizer que é estranho ir a um festival de cinema no meio de uma pandemia. Porque muito do que faz o “ambiente” de um festival – os encontros, as conversas, a sensação de comunidade – se perde quando temos todos de estar “socialmente distanciados”, protegidos contra o malfadado vírus que veio trocar as voltas ao ano de 2020.
Cada festival resolveu o distanciamento como muito bem entendeu, mas o Porto/Post/Doc, em sétima edição iniciada na sexta-feira com o espantoso filme-concerto de Spike Lee e David Byrne, American Utopia, teve de lidar com o confinamento de fim-de-semana que “ceifou” as sessões previstas para sábado e domingo (e deverá ainda obrigara a alterações no programa da jornada de encerramento, dia 28). Isso não afectou – antes parece ter reforçado – o conceito que o norteia este ano, A Cidade do Depois, igualmente explorado nas conferências do Fórum do Real que decorrerão virtualmente, nas contas do festival no Facebook e no Instagram, às 11h dos próximos dias 25, 26 e 27.
A Cidade do Depois ganha uma especial força neste ano de 2020 em que vivemos todos numa espécie de “limbo”, sem poder regressar ao que já foi e ainda incertos sobre o que aí virá. O próprio festival, aliás, tem também nesta edição uma existência virtual para lá das sessões públicas no Rivoli e no Passos Manuel, através do site online.portopostdoc.com: mais uma camada para juntar às múltiplas camadas do palimpsesto em permanente construção que é uma cidade (e um festival, de algum modo, também).
É fascinante, por isso, ver como nas escolhas deste programa temático ressoa a ideia de limbo. Já nem é preciso citá-la a propósito das fantasmagorias que Pedro Costa evoca nas Fontainhas de Ventura em Juventude em Marcha (Rivoli, sexta-feira, 15h), porque o cineasta português não filma outra coisa que não sejam limbos; nem a propósito do loop temporal do imortal La Jetée, de Chris Marker (Rivoli, quarta-feira, 17h), que é, em si próprio, um limbo. O essencial é verificar como essas fantasmagorias de uma cidade escondida ressoam em três escolhas provenientes de períodos muito diferentes do cinema independente americano: The Exiles, de Kent Mackenzie (Rivoli, segunda-feira, 17h), Killer of Sheep, de Charles Burnett (Passos Manuel, quarta-feira, 16h), e Bless Their Little Hearts, de Billy Woodberry (Passos Manuel, segunda-feira, 16h).
Em comum, Mackenzie, Burnett e Woodberry têm Los Angeles, que filmam por ângulos distintos. No caso de The Exiles, rodado entre 1958 e 1961, o foco é Bunker Hill, uma zona habitada maioritariamente por índios americanos “exilados” na cidade (e que seria arrasada pouco depois do final das rodagens); Burnett e Woodberry, por sua vez, filmam os bairros negros de Watts e Compton. Hoje, estes filmes exibem uma patine de “arquivo”, de “memória descritiva” – “era assim que vivíamos”. Mas são também objectos que exalam a estase de comunidades que sobrevivem como podem numa sociedade que as exclui à partida.
The Exiles, docu-ficção construída a partir das vidas dos seus próprios actores (não-profissionais), é um nocturno de gente à deriva, “desalmada”, no sentido de estar longe da sua alma, da sua ligação à terra; gente que tresanda a fumo de cigarros, cerveja choca e rock’n’roll. Faz pensar no On the Bowery de Lionel Rogosin, mas também numa versão desencantada do American Graffiti de George Lucas que tivesse ejectado toda a sua nostalgia para apenas guardar a desilusão de uma vida em luta constante por uma dignidade mínima que é constantemente negada.
É esse limbo que Charles Burnett filma em Killer of Sheep (1977), obra central da cinematografia negra americana em que um casamento em desintegração acelerada devida às pressões da vida moderna serve de pretexto para um retrato atento das texturas de viver à margem. Stan, o trabalhador do matadouro de ovelhas, está preso num limbo do qual não consegue sair; não é o único, ao seu redor toda a gente é prisioneira de comportamentos, expectativas, e o filme literalmente transpira a frustração, a ansiedade de quem sobrevive sem saber para onde se virar.
Bless Their Little Hearts, realizado em 1983 por Billy Woodberry (que será um dos participantes do Fórum do Real) sobre um argumento de Burnett, poderia ser uma continuação de Killer of Sheep – embora o seu herói seja diferente, aqui um desempregado que não consegue mais do que trabalhos pontuais enquanto a mulher se mata a trabalhar para manter a casa à tona, e Woodberry filme o seu quotidiano de modo mais lírico, menos brutal. No entanto, é a mesma textura dos pequenos detalhes do quotidiano sofrido, frustrado, de gente que continua a sonhar com o impossível, a mesma sensação de sonhos abortados pelas circunstâncias, que vem ao de cima em Bless Their Little Hearts. O mesmo limbo de estar preso entre o passado e o futuro num presente que parece dar pouca esperança. Um limbo sobre o qual o Porto/Post/Doc não dá respostas, mas pensa nas perguntas.