Dois contos de Camilo Castelo Branco (do volume II da obra que reúne toda a sua ficção curta)
Introdução à História da Égua e Um poeta português...rico! , que aqui se publicam, são dois dos contos do segundo de cinco volumes que a E-Primatur está a editar ao ritmo de um por ano e que compilarão toda a obra ficcional curta de Camilo Castelo Branco (1825-1890), de forma conjunta e uniforme, mantendo uma ordem cronológica de publicação. Esta obra, que na segunda-feira chega às livrarias, tem organização, introdução e notas de Hugo Pinto Santos, crítico literário do PÚBLICO.
INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ÉGUA (4)
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ÉGUA (4)
— Ainda fazes romances? — perguntou-me o meu amigo.
— Ainda... «sedet, aeternumque sedebit, infelix»(5)... faço romances, e expio os pecados de meus avós, neste incessante rodar do penedo ao alto do monte, e resvalar com ele ao fundo (6).
— Estás magro, homem! — observou ele, apalpando-me o pescoço, provavelmente com o tacto magistral de quem ajuizava da nutrição dos potros pela fibra atochada e nediez do pescoço. — Deixa-te desse modo vivente, se não aspiras à mumificação. Olha que a natureza fez homens, não fez literatos. O Criador, quando expulsou Adão do paraíso, teve a piedade de lhe não dizer: «Serás escritor!» O que lhe disse foi: «Viverás trabalhando até suar.» Considera, amigo, que é necessário suar para viver. E o escritor não sua: logo, morrerá anãzado, qual te vejo, pobre homem! Saíste das prescrições da natureza; torna sobre ti, e corrige o vício.
— Isto não se corrige — repliquei eu.
— Queres dizer-me que a imaginação é uma espora? Põe cabeções ao espírito; colhe as rédeas; e, se ele teimar, bate-lhe com a cabeça numa pedra. A imaginação que faz novelas é um talento perdido, como os talentos escondidos de que fala a parábola de Jesus. Porque não hás-de tu aproveitar a imaginativa em coisas úteis? Inventa um arado, um moinho, um alcatruz, um esgotador de rios, uma ratoeira de apanhar toupeiras, um visco de desbastar grilos e pardais. Dirige a outra ordem de inventos a tua fantasia, de modo que os movimentos corporais te fiquem desembaraçados, e o ar puro te não vá coado por vidraças aos pulmões. Distende os músculos, agitando-os; exercita as funções respiratórias, aprumando o corpo na posição vertical; regenera o sangue, e verás que ainda és homem... Tenho sincera pena de ti!
— Também eu tenho... — atalhei eu.
— E, depois, peço licença — continuou António Joaquim — para ponderar que as tuas fantasias romanescas são, na maior parte, desnaturais e falsas.
— Ora essa!...
— Espanta-te; mas não te agastes com esta rudeza. Sabes que eu leio os teus romances: é o máximo sacrifício que posso fazer-te das minhas horas de repouso. Em louvor dos teus livros, basta dizer-te que os leio. Prendem-me a curiosidade uns paradoxos de virtude que tu estendes a trezentas páginas. Já fizeste chorar minha mulher: quase que ma ias fazendo nervosa! Foi-me preciso dizer-lhe que tu mentias como dois ministérios, e que timbravas em ter um estilo de cebola ou de mostarda de sinapismos que faz rebentar chafarizes de pranto. Nem assim consegui desacreditar-te! Assim que sai romance teu, minha mulher, combinada com o editor, seca-me a paciência, até que o livro chega de Braga entre um papeliço de açúcar e o saco do arroz. A pobre mulher começa a chorar no título; estrenoita-se a ler; e, ao outro dia, está desolhada, e amarela como as doze mulheres tísicas, que tens levado à sepultura num rio de lágrimas. Tens romances, meu amigo, que mentem desde o título. Comecei, pouco há, a ler um que se chama: «A Mulher Que Salva»( 7).
— Então — acudi eu — que tem esse título?
— Não tem senso comum.
— Estou pasmado!... Pois a mulher que salva...
— Não há mulher nenhuma que salve. Homem perdido por uma, não pode ser salvado por outra.
— Cala-te aí! Tu não sabes nada do coração humano, António Joaquim! — redargui eu. — Casaste moço, há dez anos; envelheceste no dia em que casaste; és a matéria feliz; não entendes o que é a desgraça nem as alegrias do coração, alegrias que se revezam com os dissabores, é isso verdade; mas também é certo que, fora da esfera dos teus gozos, há delícias da alçada do espírito, há mulheres salvadoras que as trouxeram do céu, e as derramam como bálsamos colhidos nos colmeais dos anjos...
— Aí vem o estilo ramalhudo! — acudiu ele. — O absurdo não fica melhor justificado com a linguagem absurda. Vocês, os narradores de infortúnios materialíssimos, os almotacés das mais purulentas chagas sociais, deviam de ser obrigados a calarem-se, pela mesma razão que a polícia das cidades obriga os mendigos a esconderem os seus aleijões e cancros nauseabundos. E são vocês, os expositores de úlceras, que nos acusam de materiais, a nós, os que temos uma linguagem chã, e juízo claro como ela, para censurar e desadorar demónios incríveis que nos apresentam, ao lado de uns anjos impossíveis. Se vos vamos à mão, pondo em dúvida a existência sublunar de «mulheres que salvam», aí vens tu e os teus colaboradores da mentira, gritando em estilo frondoso que há mulheres portadoras de bálsamos celestiais, colhidos nas colmeias dos anjos. Cebolório!
Tanto creio eu nessas mulheres como nas colmeias dos anjos, cujas abelhas são os próprios anjos. «Anjos» para tudo! É um desperdício espantoso de potestades celestiais o que fazem os escritores à moda. Se vos fecham o Céu, como fecharam o Empíreo aos poetas de há sessenta anos, palavra de honra que não sei onde vocês irão buscar o lastro dos seus poemas e romances! Ireis a pique à falta de peso nas frágeis tabuinhas...
— Parece que chegas impando ciência das covas de Salamanca! — interrompi eu ofendido em nome dos meus colegas. — Será isso moléstia de espírito que se te pega do macrobismo da liteira?! Eu não admiro que Volney sentado nas ruínas de Palmira pregasse cavamente acerca das ruínas dos impérios e da humanidade; e menos admiro que um homem de razão esclarecida como tu, bamboado numa locomotiva como esta, se sinta levado aos tempos do Feliz Independente, e desdenhe do romance moderno, contemporâneo do vapor!
— A minha questão é outra — contraveio o meu amigo. — Não louvo nem detraio o que se fazia há cem anos. Reprovo a contrafacção dos tipos que modernamente se dão no romance, e com particularidade nos teus romances. Quando eu lia novelas, preferia as da escola dos castelos lôbregos, dos fantasmas da meia-noite, dos vampiros que dispensavam as sanguessugas, e dos carnífices de olhos esbugalhados, que relampejavam nas trevas das masmorras. Isto entretinha-me e horrorizava-me, enquanto lia. Lido o volume, dava uma gargalhada, e dizia em elogio do autor: «Que grande patusco!» Porém, se lia algum raro romance da escola real, ou realista, como dizem os franceses, acabada a leitura, não ria; ficava-me a cismar tristemente, e dizia comigo: «Isto é verdade; o mundo é assim; as misérias do género humano argumentam contra a perfeição das obras divinas dos astros para baixo. O físico do homem é admirável como o físico do insecto microscópico; mas o moral do homem é repelente, é hediondíssimo!» Aqui tens a causa da minha abominação dos romances trasladados da natureza. Agora, cuido eu que há uma escola mista, à qual pertencem os teus livros.
— Mista?!
— Sim: vocês inventam virtudes impossíveis de par com perversidades incombináveis. No mesmo capítulo oferecem-nos a mulher nua exsudando o pus da gangrena moral, e outra mulher vestida com o manto das virgens, e rescendendo aromas das florinhas do Hibla. Ao lado do plebeísmo da taverna o orientalismo das magníficas figuras da Bíblia.
— Pois se a sociedade é isso! — repliquei eu. — Se a vida é esse misto, que te repugna, como queres tu que se escreva, António Joaquim?
— A sociedade não é isto, homem! Toda a desgraça comum tem uma razão de ser; todo o crime tem uma face comovente que exora perdão para o delito repugnante. Não há crime absolutamente imperdoável; também não há virtude imaculada. Nego que se confrontem duas mulheres e se diga: «Esta mulher perdeu um homem; aquela mulher salvou-o.» A que perdeu resvala de degrau em degrau; a que salvou levanta-se por entre as nuvens fora, até se esconder à análise do espírito humano. Uma entra no Inferno sem dar a razão por que o romancista a mandou para lá; a outra bate às portas do Céu, e entende que não vive honestamente em companhia das onze mil virgens.
— Isso não é questionar; é «fazer espírito» — interrompi. — Seja o que for, é uma coisa que depõe vantajosamente a favor da tua habilidade galhofeira. Em todo o caso, entendes tu que não há mulher que salve!
— Entendo. Coisa que salve há uma só: é a experiência das mulheres que perdem. Ainda há uma outra, que não ouso dizer-te com medo que me julgues um zombeteiro de mau gosto.
— Que coisa é essa?... diz lá!
— É uma égua brava.
— Uma égua brava?! Que mangação!
— Ouve lá a história de uma «égua que salva».
Notas: (4) Os títulos dos «capítulos», ou, mais propriamente, de cada narrativa, só foram introduzidos na 2.a edição, a partir da qual foram mantidos [nota do organizador]. (5) Virgílio, Eneida,VI,616-7 («sentado está e sentado ficará por todo o sempre/o desventurado» [Eneida, trad. Carlos Ascenso André, Livros Cotovia, Lisboa, 2020). Palavras referentes ao castigo de Teseu, condenado a assumir aquela posição para sempre nos infernos). Quer na 1.a, quer na 2.a ed., a transcrição surge errada: «Soedet eternus que soedebit, / Infelix». Erro que, de resto, a ed. Parceria repete quase na íntegra: «Sedet eternus que soedebit,/ Infelix» [nota do organizador]. (6) É claro que o nosso autor alude agora a outro supliciado, Sísifo, que, curiosamente, não é referido na Eneida [nota do organizador]. (7) Henrique Marques, na Bibliografia Camiliana( ed.cit.), historia minuciosamente a publicação inicial desta narrativa. Foi em 1858 e 1859 – sob o título A Mulher Que Salva – que o nosso autor a fez publicar num periódico por si redigido, «chamado Mundo Elegante, o qual morreu por se ter consagrado a uma classe que não existia na terra onde nasceu», conforme o próprio Camilo anotou em Cenas Inocentes da Comédia Humana – miscelânea que abre o presente volume. «Quase simultaneamente a mesma obra aparece, com o mesmo título [A Mulher Que Salva], publicado em folhetins do jornal O Nacional.» (Anos de Prosa, Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1973. Fixação do texto por Maria Joaquina Nobre Júlio. Nota preliminar por Lucília Gonçalves Pires). Mais tarde, já em 1861, como ensina Júlio Dias da Costa, «estando Camilo na cadeia [da Relação], surge o romance na Revolução de Setembro, muito modificado na forma e crismado em Anos de Prosa» (Palestras Camilianas, Empresa Literária Fluminense, Lisboa, 1925) [nota do organizador].
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UM POETA PORTUGUÊS... RICO!
I
POETA
Conheci, há vinte anos, um moço provinciano, que descera pobre e sozinho das suas montanhas, com a esperança de as subir rico e acompanhado de lustrosa parentela. Leopoldo Ferraz era então aprendiz de comerciante no Porto, cidade invicta, cuja padroeira, nossa Senhora, protege e bafeja a prosperidade de quantos a invocam e buscam no trilho da probidade. Exceptuam-se, porém, entre os que a buscam, uns infelizes que, apenas andados alguns passos, se sentam à beira do caminho e começam a conversar com árvores, com estrelas, com coisas que lhes avoejam lá por cima e só eles descortinam por entre nuvens. Estes exceptuados são os poetas e Leopoldo Ferraz era poeta.
Naquele tempo escreveu ele uns versos, assinou-os indiscretamente e pediu aos redactores da Lira da Mocidade que lhos publicassem. O poema era uma bem concertada ode que ele denominou Saudade. O louvável e comovente assunto ressumbrava lembranças afectuosas da sua aldeia, maviosas saudades de sua mãe já morta, de suas irmãs pobrinhas e de seu pai que prometia cair breve e levar consigo o esteio das desvalidas filhas.
Um vizinho do patrão, que vira aquele nome no periódico, duvidou que o caixeirote andasse em letra redonda, e para certificar-se entrou na loja e perguntou em presença do amo:
— Você é poeta?
— Se sou poeta!... — balbuciou Leopoldo.
— Sim... está aqui o seu nome debaixo disto... É você que fez esta versalhada?
— Fui.
— Quem?! — interveio o patrão franzindo o sobrolho.
— Eu, senhor Joaquim — disse placidamente Leopoldo.
— Então já escreves em gazetas?! Estás pronto!... Hás-de dar bom burro ao dízimo... Não tem dúvida... Por isso é preciso ir chamar-te à cama às seis horas da manhã... Acho que de noite, em vez de dormir, estás a fazer sonetos...
— Não tenho faltado às minhas obrigações... — observou o caixeiro entre grave e submisso.
— Pois, sim, sim — redarguiu o mercador —, eu cá patavinas em casa não nos quero. Gazeteiro ou caixeiro. É escolher. E a quem não servir, rua.
O colaborador da Lira emudeceu, e os números seguintes do periódico não trouxeram mais poesia alguma assinada, posto que Leopoldo teimasse a poetar com um pseudónimo.
Volvidos alguns meses, o lojista apanhou o caixeiro em flagrante delito. Estava ele escrevendo a sétima estrofe dum «Desespero». Agadanhou-lhe o papel, viu que era verso a coisa, amachucou-a numa bola e atirou-lha à cara, bramando:
— Já te disse que em minha casa medem-se côvados de fazenda e não se fazem versos. Procura a tua vida, que me não serves, Leopoldo. O moço levantou do chão o «Desespero» amarrotado, atirou-o para a caixa de pinho da terra, e assim que luziu a manhã esperou que o patrão lhe pagasse um resto do seu ordenado; que o mais dele tinha ido em chita para os vestidos de suas irmãs.
Saiu com dez mil e duzentos na algibeira e foi pedir trabalho a uma imprensa onde já era conhecido. Aceitaram-no como localista e revisor com a gratificação de três tostões diários, secos de tudo. O rapaz era ignorante. Se fazia lindos versos, aquilo eram flores formosas do monte sem cultura. A si se bastava o coração, a saudade e a melancolia. O rouxinol não estuda; nem as pérolas, ao sair da concha, ainda viram sol.
O que ele não podia escrever, sem estudo e prática, era o louvor ou sátira duma actriz, as pompas dum baile, a análise duma partitura, a toilette duma filha do assinante, e outras espécies que requerem sabenças não vulgares.
Caiu no desagrado das damas o noticiarista. Não valia realmente os três tostões diários! Verdade é que ele dava um folhetim poético todas as segundas-feiras; mas os assinantes, naquele dia, liam o artigo de fundo e os anúncios por entenderem que o restante eram burundangas, frandulagens e salgalhada.
Até que o redactor-proprietário me encarregou do dizer ao poeta que a sua colaboração estava danificando a empresa.
Repliquei ingenuamente que as poesias de Leopoldo eram admiráveis. O empresário redarguiu verídica e triunfantemente que os assinantes as não entendiam, e o ameaçavam de se passarem ao Periódico dos Pobres, onde as poesias do Barbeiro faziam escangalhar o público de riso.
— Veja você — acrescentou o redactor — se ele quer escrever no gosto do Barbeiro, que eu lhe dou mais um tostão por dia; senão...
— E saberá ele escrever assim? — perguntei. — Diz lá o Ponsard que le mauvais ne le fait pas qui veut.
— Não me importa o que diz o Ponsard, bem que tenha muita razão; mas você sabe que nós estamos à mercê dum público... — e acrescentou baixinho — dum público muito estúpido.
— Sei isso.
— Então que quer? Será proveitoso dizer-lhe: «Senhores assinantes, as poesias do senhor Leopoldo Ferraz são óptimas; vossemecês é que são uns alarves. Se as não percebem, despeçam-se do jornal, e vão cavar pés de... seus pais». Que diz a isto?
— Vou saber se ele quer escrever cartas como as do Barbeiro.
— Pois vá, e anime-o a entrar nessa carreira. Chalaça, chalaça é que nós queremos.
Fui. Leopoldo disse-me, desde que lhe apontei a proposta, que não tinha chiste nenhum a escrever, nem conhecia os personagens à custa de quem o engraçadíssimo José de Sousa Bandeira fazia impar de riso as severas e pandas barrigas dos burgueses. Pedi-lhe que ensaiasse uma sátira aos vícios e «ridículos» discorrendo por eles vagamente sem personalizar. Aconselhei-lhe a leitura de N. Tolentino, de Bocage, de Francisco Manuel do Nascimento.
— Pois sim — conveio o pobre rapaz —, eu verei. Amanhã lhe mostrarei o que esta noite fizer.
Ao outro dia, apareceu-me Leopoldo com o rosto abatido e as cores quebradas.
— Não fiz nada... — disse ele. — Singular desventura! Quando ajeitava o verso para exprimir alguma ideia alegre, via minhas irmãs e meu pai; ele entrevado, e elas a fiarem linhas para embarque, serviço de que não tiram sequer pão que as farte. Como quer você que eu escreva sátiras risonhas contra os vícios? Mande-me chorar, que é o que eu posso fazer... Em suma, diga ao senhor fulano que eu me dou por demitido do seu jornal.
— E que vai fazer?
— Não sei. Provavelmente farei... versos.
— Que lhe não valem o pão de amanhã.
— Tanto monta! As lágrimas entretêm a fome.
— Não me seja tão poeta, senhor Leopoldo! — insisti com profunda mágoa. — Pensemos no que há-de ocupá-lo.
— Pois sim... pensemos — disse ele, sorrindo.
— Se o admitissem num colégio a ensinar instrução primária...
— E estaria eu no ponto de a ensinar?! Não sei mais do que isto que vê, meu amigo. Tenho boa forma de letra, leio correntemente; mas ignoro até as mais triviais regras da gramática. Se não escrevo erros grosseiros, é isso um milagre... que faz a precisão.
Pareceram-me bem atinadas as reflexões.
Pedi-lhe que se tornasse à vida comercial.
— E quem me quer? — objectou ele avisadamente. — Há aí patrão que confie o seu mostrador dum patavina que saiu do escritório duma gazeta? Você não sabe que os caixeiros me escarnecem quando eu passo? Enfim, não se inquiete com a minha sorte. Entrego-me à Providência. Se me ela desamparar, buscarei o amparo certo de alguns palmos de terra...
— Principia o senhor a ser covarde... — atalhei eu.
— Ainda não. Se eu me suicidar, creia que primeiro hei-de dar provas de extraordinária coragem.
Procurei-o no seguinte dia, e encontrei-o a estudar nos livros rudimentares por onde são examinados os professores de instrução primária. Disse-me bem-assombrado que se estava preparando para requerer uma cadeira de mestre-escola no Minho.
— São noventa mil reis... — observei-lhe com ar de lástima.
— Hão-de chegar-me. Noventa mil reis, e algumas horas de liberdade para a alma, é um ordenado superabundante.
E, com efeito, requereu, e concorreu à cadeira. Fez satisfatório exame, foi provido, e levou uma de suas irmãs consigo, para um concelho convizinho dos Arcos de Valdevez.
Nos dois primeiros anos ainda me escreveu algumas vezes. Mostrava-se contente. Algumas poesias me enviou já diversamente afinadas. Cantava os enlevos do amor. Era já esperança e não saudade o encanto delas. Transluzia-se daquele entusiasmo lírico a paixão e o pendor irresistível a um poema matrimonial com uma criatura que lá se chamava anagramaticamente Zélia.
Perguntei-lhe em prosa se ia casar-se. Respondeu que sim.
Ousei descer até o interrogar sobre os haveres da noiva. Informou-me de que a sua Elisa era tão pobre como ele e mais rica dos tesouros do Céu do que ele a merecia.
Repliquei que os tesouros do Céu, nos negócios desta vida, regulavam em importância pelo dote que ele levava à sua Elisa.
Não me respondeu. Honrado e brioso procedimento, que a minha sandice era desprezível.
Isto passou em 1850.
Nunca mais o vi até ontem, 16 de Agosto de 1868.
II
RICO
Estava eu na varanda da Hospedaria dos Dois Amigos, em Braga, quando vi rodar uma caleche tirada por dois anafados machos, que me faziam saudades das carroças da minha infância. Parou debaixo da janela o trem ornamentado de dois lacaios bem trajados, mas sem divisas nem galões indicativos do fidalgo que serviam.
Apearam um homem e três senhoras que entraram ao pátio da hospedaria.
Perguntei ao criado da casa quem tinha chegado.
— É um brasileiro lá das bandas de Caminha, que se chama o senhor Ferraz.
Tinham-se-me ido os olhos na luzidia parelha dos machos. Que o dono se chamasse Ferraz e fosse brasileiro das bandas de Caminha, não me importou.
Pouco depois desci ao pátio com o intento de examinar os possantes quadrúpedes, e vi o brasileiro que dava ordens ao sota-cocheiro. Ao voltar-se de rosto para mim, fitou-me muito na face e perguntou-me se eu era um fulano de tal.
— Sim, senhor, um seu criado.
— Um meu amigo antigo — emendou ele.
— Não me recordo...
— Há-de recordar-se... Dê-me licença que entremos no seu quarto ou no meu.
O timbre da voz já me ia entreabrindo reminiscências do que quer que fosse muito remoto na minha vida; mas nada claro e definido se me dilucidava.
Entrámos no quarto.
O brasileiro apertou-me estremecidamente ambas as mãos e disse: — Eu sou aquele Leopoldo Ferraz, ex-caixeiro e ex-noticiarista... — O senhor! — atalhei eu com veemente ímpeto. — É Leopoldo Ferraz... que eu conheci há vinte anos no Porto? — Sou.
— Tão mudado!... O senhor era magro, tinha uma estatura mediana...
— Engrossei e cresci — explicou ele, sorrindo. — Dá-me licença que eu vá dizer a minha mulher e a minhas irmãs que me demoro aqui meia hora com um meu antigo colega? Não se agaste com esta ambiciosa camaradagem de que eu me orgulho...
— Nada; eu antes queria que o senhor, visto que é brasileiro, me chamasse colega, em respeito ao Brasil, e não ao periódico.
Sorriu-se, foi e voltou.
No entanto, me estive eu a revocar memórias de 1848 e 1849, a lembrar-me do esgrouviado localista do Nacional que não tinha traço de parecenças com aquela sadia corporatura puxada por dois agigantados machos e servida por dois lacaios.
— Pois este é, na verdade, o mestre-escola! — me perguntava eu, quando ele entrou.
— Recorda-se — perguntou o poeta da Lira — de umas cartas que lhe escrevi em 1850?
— Apenas me lembro de uma em que o senhor me noticiava o seu casamento. Depois dessa, não recebi mais alguma, que me lembre. — Não lhe escrevi mais. Primeiro deixei de lhe escrever porque não tinha notícia boa da minha vida que lhe desse. Em 1854 procurei-o no Porto para lhe pedir um favor; mas você estava em Lisboa. Depois os anos decorreram, e a distância separou-nos como duas pessoas que se encontraram na encruzilhada de dois caminhos opostos. Não há nada espantoso nem sequer notável neste esquecimento. Se nos aqui não encontrássemos, seríamos como duas pessoas que nunca se viram. Não o acuso de ingrato, porque você me não deve algum benefício; e também me não confesso ingrato, porque assim é o mundo, e ninguém se pode isentar de ser como são todos... Quer saber a minha vida, não é assim?
— Desejo muito... Foi para o Brasil?
— Não, senhor. Eu nunca fui ao Brasil.
— Não? Disse-me o criado da hospedaria que o senhor era brasileiro.
— O meu dinheiro é que veio do Brasil... Eu lhe conto. Casei, como sabe, com uma rapariga muito pobre. Vivia ela com seu irmão, que tinha tenda de vinho e bacalhau, uma mercearia-taberna que, se falisse, nunca poderia exceder um activo de setecentos e vinte réis. Eu dava escola, minha mulher governava a casa, e meu cunhado em semanas de bom comércio apurava os seus seis tostões na mercearia, dos quais auferia um lucro regular de oitenta reis por dia. Os meus treze vinténs diários de professor abasteciam a nossa mesa. Habituei-me a trajar por igual com os meus discípulos e a comer as couves e as batatas saborosas que a minha mulher guisava deliciosamente.
Vivia contente, quando meu cunhado, frequentador de feiras, entrou numa desordem de que resultou matar ele um vizinho às pauladas. Pôde escapulir-se e esconder-se. Avisou-me da sua paragem. Fui vê-lo, e pedi-lhe que fugisse para outra província, visto que a justiça lhe andava no rasto. Disse-me ele que arranjasse eu modo de embarcar para o Brasil, alcançando-lhe um passaporte e meios para pagar a passagem.
Quanto a meios, não se me figurou invencível a dificuldade. Certo lavrador, pai de um meu discípulo, tinha-me oferecido empréstimos que eu nunca aceitara. Pedi-lhe oito moedas, e emprestou-mas. O pior de obter seria o passaporte. Fui ao Porto. Procurei-o a você para me auxiliar; e, como o não encontrasse, vali-me de um empregado do Governo Civil, que, mediante quatro moedas, me obteve um passaporte. Voltei à minha aldeia, a levantar novo empréstimo. Saí de noite com meu cunhado e, por cortar demoras, tive à ventura de o ver sair barra fora.
Durante dois anos, sofri e sofreu minha mulher extraordinárias privações. O empenho de doze moedas transtornou a boa regularidade do nosso passadio. Além disto ganhei muitos inimigos, quando se soube que meu cunhado se escapara, mediante as diligências que eu empregara no Porto. As autoridades do meu concelho quiseram suspender-me e intentaram processar-me como falsificador de passaportes.
Fez o tempo o seu salutar ofício. Os ódios resfriaram; e eu, já pagas as dívidas, me fui remediando com menos apuros.
Meu cunhado, chegado ao Rio de Janeiro, procurou um primo de sua mãe, que lhe diziam ser muito rico. Encontrou um velho que o recebeu agradavelmente e o mandou para a roça feitorizar umas fazendas. Por lá se deteve três anos, no termo dos quais me remeteu as doze moedas, que eu tinha despendido, e mais doze para sua irmã, com promessas de nos desapertar das angústias da pobreza.
No seguinte ano, enviou-nos de pancada um conto de réis, avisando-nos de que seu tio era morto e lhe deixara todos os seus haveres, que valiam para mais de quatrocentos contos, moeda forte.
Assim que recebi no Porto o conto de reis fui-me entender com a mãe do homem que meu cunhado tinha morto. Dei-lhe metade para ela desistir de ser parte contra o réu. Os outros quinhentos mil reis distribuí-os pelo Ministério Público e pelas testemunhas, com promessas de mais liberal galardão. Foi, pois, meu cunhado julgado como ausente e absolvido.
Escrevi-lhe dando-lhe a boa nova de que tinha livre entrada no seu país.
Tão depressa recebeu a inesperada notícia, liquidou os seus bens de fortuna e embarcou para Portugal, tanto mais contente quanto as doenças e a nostalgia lhe iam por lá minando a vida rapidamente.
Chegou ao Porto em 1857.
Fui assistir-lhe ao desembarque. Pasmei quando o vi rodeado de capitalistas portuenses que já antecipadamente haviam recebido cartas de recomendação não solicitadas.
Três barões se disputaram largo tempo a honra de conduzir meu cunhado em carruagem para suas casas; como ele, porém, recusasse hospedar-se em casa de algum, seguiram-no todos até ao Hotel de Francfort. E como vissem meu cunhado abraçar minha mulher e chamar-lhe a sua boa irmã, trouxeram à noite as respectivas baronesas, e encheram a sala de tal modo e com tal zuniada que minha pobre mulher estava como aflita no meio de tanta dama perliquiteta, que lhe falava de coisas que ela não percebia.
Assim que nos despejaram os quartos, atirámo-nos aos braços uns dos outros a chorar de alegria.
Meu cunhado estava doente e muito desfigurado; mas, em linguagem e maneiras, era outro homem. O dinheiro refundira-o desde a alma até ao feitio dos pés. Eu, ao pé dele, parecia o antigo tendeiro; e ele ao pé de mim dava ares do antigo poeta, enriquecido com os estudos e experiência de longas viagens na Europa e Ásia.
Descansados alguns dias, saímos para a província. A duas léguas da nossa aldeia, esperava-nos a melhoria do concelho, alguns vereadores, o regedor, o juiz eleito, as testemunhas do processo, e até o juiz que o absolvera. Meu cunhado abraçou-os um por um, e falou a todos com muito concerto e espírito grandioso de homem que vinha disposto a engrandecer a sua terra natal. Um dos membros da junta de paróquia pediu a palavra e disse que a freguesia esperava da liberalidade de meu cunhado que sua senhoria mandasse fazer uma torre para a igreja, e botasse abaixo a lei dos cemitérios. Meu cunhado prometeu levantar torres e botar abaixo todas as leis que eles quisessem. Entramos na freguesia aclamados pela bimbalhada de duas sinetas, foguetes, bombas reais e a música de Caminha.
Duraram breves semanas as esperanças de melhoras. Meu cunhado piorou duma hepatite incurável, e faleceu seis meses depois, deixando-nos, à irmã, a mim e a meus filhos todos os seus teres.
Aqui tem a minha vida. Estou rico. Além de minha mulher e duas irmãs, que vêm comigo, tenho três filhos num colégio do Porto, duas meninas a educar nas Ursulinas aqui em Braga, onde venho todos os meses.
Agora conte-me alguma coisa da sua vida.
— Eu também estou rico.
— Sim? Quanto folgo!... Pois não o pensava... Sabia que você escreve sempre...
— Escrevo por vício.
— Teve alguma herança, ou a sua fortuna é o resultado do trabalho? — Não, senhor: a minha fortuna não é dinheiro.
— Então?!
— É a conformidade.
— Só a conformidade?!
— E dois filhos a quem Deus entregou as chaves do tesouro das minhas alegrias. E vossa excelência ainda faz versos?
— Versos contados pelos dedos, não, senhor — respondeu Leopoldo Ferraz. — Versos tão-somente os faz quem tem a alma cheia de saudades ou de esperanças. Saudades... de que hei-de eu tê-las? Esperanças também me não alvoroçam, porque sou feliz em extremo. Gozo quanto desejo. Faço poemas; mas não os escrevo; digo-os no silêncio do coração a minha mulher, a meus filhos e a minhas irmãs. Se me dá licença que eu lhas apresente...
— Serei apresentado a suas excelências com muita satisfação. Passei o restante do dia em alegre palestra com as três senhoras.
Hoje de manhã nos despedimos do Bom Jesus do Monte, onde eu fiquei escrevendo, com licença do ex-professor de instrução primária, esta veracíssima história dum poeta rico.
A sorte dele desejo cordialmente a todos os mestres-escolas do meu país.
Bom Jesus do Monte, 17 de Agosto de 1868.