SNS perdeu 842 médicos desde o início da pandemia. Quase 500 reformaram-se
Administração do Sistema de Saúde adianta que nos oito meses da pandemia se aposentaram 471 médicos e foram contratados 378 especialistas. Os internos não entram nestas contas.
Desde o início da epidemia de covid-19 em Portugal, em Março, até Outubro, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) perdeu 842 médicos, entre especialistas e internos. São dados do Portal da Transparência do SNS que revelam a dimensão deste saldo negativo numa altura em que as necessidades de médicos dispararam por causa da pandemia. Apesar de se explicar em grande parte pelo elevado número de aposentações registado neste período, a diminuição não se justifica apenas pelas saídas por reforma.
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Desde o início da epidemia de covid-19 em Portugal, em Março, até Outubro, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) perdeu 842 médicos, entre especialistas e internos. São dados do Portal da Transparência do SNS que revelam a dimensão deste saldo negativo numa altura em que as necessidades de médicos dispararam por causa da pandemia. Apesar de se explicar em grande parte pelo elevado número de aposentações registado neste período, a diminuição não se justifica apenas pelas saídas por reforma.
Dados coligidos pelo Sindicato Independente dos Médicos (SIM) nas listas da Caixa Geral de Aposentações e a que o PÚBLICO teve acesso indicam que saíram do SNS por limite de idade ou reforma antecipada 476 clínicos nestes oito meses. Comparando com os números do Portal da Transparência, sobram assim ainda perto de três centenas de médicos que não ficaram no SNS. Onde estarão? Alguns serão médicos que acabaram o internato e não foram entretanto contratados ou que optaram por não ocupar as vagas abertas nos concursos, outros terão ido trabalhar para o sector privado ou para o estrangeiro, pondera Mário Sardinha, do SIM, o médico responsável pela pesquisa.
São vários os factores que explicam este fenómeno, frisa. Não são só os salários que tornam o SNS “pouco atractivo”, alguns médicos que acabam a especialidade preferem não ficar no sector público “por causa das condições de trabalho”, explica. “Um exemplo: abre-se um concurso para ortopedistas para um serviço hospitalar no Algarve que tem um quadro para 10 especialistas, mas só tem dois a trabalhar. Alguém se arrisca a concorrer, sabendo que vai para um serviço onde podem ficar apenas três médicos a fazer o trabalho de 10 [o próprio e os outros dois, na hipótese, provável, de mais ninguém concorrer]?”
Outros “não querem ir para longe da família e preferem ficar à espera do concurso do ano seguinte" e, por vezes, os concursos também se atrasam e, enquanto não se concretizam, alguns vão saindo. Foi justamente o que aconteceu este ano em que, devido à pandemia, os concursos para contratação de recém-especialistas se atrasaram muito.
Ano está a ser “atípico"
Confrontado com estes dados, o Governo tem preferido destacar o aumento do número de médicos ao longo dos últimos anos e, em Setembro, a ministra da Saúde fazia questão de sublinhar que a diminuição do total de especialistas desde o início do ano iria ser compensada com os concursos para a contratação dos médicos que acabaram o internato em Outubro.
Mas nem mesmo isso foi possível. Os dados adiantados ao PÚBLICO pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) indicam que se aposentaram ao longo destes oito meses 471 médicos e que foram contratados no mesmo período 378 especialistas. Um saldo negativo de 93, portanto. Sem querer comentar os dados do Portal da Transparência, a ACSS assume que os internos não entram nestas contas e lembra que “este ano está a ser atípico”, faltando ainda concluir o concurso para 911 especialistas nas áreas hospitalares e para 39, na de saúde pública.
A ACSS junta ainda estes números às 435 vagas do concurso de medicina geral e familiar para afirmar que o total de “1385 postos de trabalho” representa “uma majoração em 13% em relação ao número de médicos que concluíram recentemente a sua formação (1227), procurando, deste modo, atrair mais médicos para o SNS”.
“O Governo assume que todos estas vagas vão ser ocupadas, o que não acontecerá, tendo em conta o histórico dos concursos nos últimos anos”, contesta o deputado do Bloco de Esquerda, Moisés Ferreira. Aliás, no concurso de medicina geral e familiar, que ficou recentemente concluído, um terço das vagas ficaram por ocupar (146 das 435), e no das especialidades hospitalares “deverá acontecer o mesmo”, calcula o deputado, lembrando que a percentagem de postos de trabalho que ficam desertos tem oscilado entre os 30% e os 35% nos últimos anos. “Num bom cenário, das mais de 900 vagas abertas para os hospitais e para a saúde pública deverão ficar ocupadas cerca de 600”, estima.
O Bloco de Esquerda tem, aliás, invocado o saldo negativo evidenciado pelos dados do Portal da Transparência para insistir na necessidade de maior investimento no SNS e reclamar medidas que permitam cativar e e convencer os médicos a permanecerem no sector público, como a possibilidade de ficarem em regime de exclusividade. “O que é verdade é que, neste ano de pandemia, o SNS está perder médicos”, remata Moisés Ferreira, que antevê que este saldo negativo se vá agravar ainda mais até ao final deste ano.
“Este Governo tem tido total incapacidade para criar condições de atracção porque não investe, actualmente os equipamentos de topo estão no sector privado. Não é com um chicote que se faz com que as pessoas fiquem no SNS. Sendo menos, os médicos ficam mais cansados e com mais vontade de sair”, critica o secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha, que quis ir mais longe e fazer um balanço dos médicos aposentados que nestes oito meses de pandemia regressaram ao SNS, ao abrigo de um regime que existe desde 2010, mas que em Março foi alargado por causa da pandemia.
O balanço indica que foram de novo contratados para o SNS 130 médicos aposentados de Março a Outubro, mas estes voltam transitoriamente, uns apenas por quatro meses, outros por um ano. Este regime, que foi criado há dez anos para ser excepcional e transitório, enquanto não fosse possível suprir a carência de médicos recém-especialistas, tem sido renovado todos os anos e, em Julho, voltou a ser prorrogado, desta vez até ao final de 2021.
“O Governo transformou uma situação transitória numa quase definitiva”, lamenta Roque da Cunha, que considera que existe um efeito perverso na medida: “Os aposentados que regressam estão a roubar o lugar a médicos recém-especialistas.”