Medronho: o fruto vermelho do futuro que Portugal está a (re)descobrir
Portugal é o maior produtor de medronho do mundo “porque os outros ainda não abriram os olhos”. O ICNF validou a arborização/rearborização de 2951 hectares de medronheiros. E a REN plantou mais de um milhão de pés desde 2010, numa área superior a 3000 hectares. Na Serra do Açor, a Montis preserva e colhe os frutos desta árvore autóctone.
Na área geográfica de produção do Medronho do Algarve, de Indicação Geográfica Protegida, os medronhos que começam a ficar maduros são, tradicionalmente, colhidos de forma manual a partir de Setembro.
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Na área geográfica de produção do Medronho do Algarve, de Indicação Geográfica Protegida, os medronhos que começam a ficar maduros são, tradicionalmente, colhidos de forma manual a partir de Setembro.
Segundo o website da Região de Turismo do Algarve, a actividade económica ligada à produção de aguardente de medronho terá tido origem no século X e sido introduzida pelos árabes na zona de Monchique. A aguardente mantém-se artesanal até aos dias de hoje, produzida em destilarias certificadas, através do recurso ao fogo lento e a alambiques de cobre com tubos finos em forma de serpentina, de onde se extrai um produto considerado “de qualidade”, a que se somam outros subprodutos. A melosa, por exemplo, uma mistura de medronho e mel.
A produção do fruto está delimitada aos concelhos algarvios de Aljezur, Vila do Bispo, Monchique, Silves, Lagos, Albufeira, Loulé, Faro, São Brás de Alportel, Tavira, Castro Marim e Alcoutim e, ainda, aos concelhos alentejanos de Odemira, Ourique e Almodôvar. Os frutos, de acordo com a ficha técnica apresentada para certificação pela Apagarbe – Associação de Produtores de Aguardente de Medronho do Barlavento Algarvio, revelam valores de metanol, acidez total e acetato de etilo inferiores ao da aguardente de medronho comum.
Medronhos na Serra do Açor
Foi, porém, no interior centro de Portugal que fomos ao encontro da árvore deste pequeno fruto comestível, que cativa cada vez mais produtores agrícolas e silvícolas em diferentes zonas do país. Nomeadamente no Norte e Centro de Portugal. É, aliás, hoje uma das 336 espécies de flora referenciadas para a Paisagem Protegida da Serra do Açor.
Outubro e Novembro são, por aqui, os meses da apanha do medronho. Sob nevoeiro e chuva miudinha, o PÚBLICO fez-se à estrada para a Pampilhosa da Serra numa manhã de sábado, calçou as botas e subiu vagarosamente à serra. Rompemos monte acima à apanha do fruto vermelho que dá cor e sabor ao Outono e cujas propriedades antioxidantes, diuréticas, anti-sépticas e depurativas são crescentemente elogiadas. Além da riqueza em vitamina C.
Também fomos à procura de perceber a importância económica e ambiental que os medronheiros assumem como corta-fogo, ajudando a travar incêndios florestais em várias regiões do país e a construir o mosaico biodiverso da paisagem nacional.
Reunido o grupo de caminhantes no largo junto ao restaurante As Beiras, guiou-nos monte acima Teresa Gamito. É a secretária-geral da Montis – Associação para a Gestão e Conservação da Natureza, uma organização não-governamental de ambiente de âmbito nacional, sem fins lucrativos, criada em Março de 2014 e sediada em Vouzela, no distrito de Viseu. Em Janeiro de 2020, contabilizava 473 sócios, gerindo 178 hectares de floresta, própria ou de terceiros, correspondentes a 25 propriedades na região Centro.
Conservação de espécies autóctones
A associação assume como objectivos centrais do seu trabalho “o desenvolvimento dos processos naturais [na floresta], promover a conservação de espécies autóctones, gerir de forma inteligente os fogos florestais e outros riscos naturais e aumentar o valor de mercado da biodiversidade”.
Pedro Oliveira, biólogo e presidente da Associação, explica ao PÚBLICO o trabalho levado a cabo pela Montis: “É essencialmente focado na conservação com as mãos na terra, ou seja, queremos demonstrar que é possível valorizar do ponto de vista da biodiversidade e, até, económico, terrenos marginais, aqueles que ninguém quer e, por isso, estão ao abandono”. Tudo com o objectivo de os tornar “mais resilientes aos incêndios”.
Não é bem uma gestão “profissional” da floresta, diz, mas, antes, “uma gestão apoiada no envolvimento da comunidade”. Também através do voluntariado, de oficinas, de bioblitz (levantamento biológico como forma de registar todas as espécies vivas de uma determinada área) e desenvolvendo “tarefas que ajudam os processos de regeneração natural (condução e, às vezes, plantação de espécies autóctones, controlo de invasoras, engenharia natural, etc.)”, explica o biólogo.
“Não será a gestão mais eficiente, mas é aquela que chega a mais pessoas e, por isso, tem carácter demonstrativo”, sublinha Pedro Oliveira, notando que o trabalho que desenvolvem “é bastante reconhecido e divulgado por quem conhece a associação”.
Duas jovens alemãs e um mestrado nas Galápagos
Na manhã de sábado em que o PÚBLICO se juntou à Montis, acompanharam-nos vários jovens, integrados no projecto Volunteer Escapes, um dos quatro apoiados pelo Programa LIFE em toda a Europa para ensaiar e avaliar a viabilidade de recorrer a voluntários do Corpo Europeu de Solidariedade, como forma de apoiar actividades de conservação da natureza e biodiversidade.
O Volunteer Escapes envolve uma parceria alargada entre nove organizações, coordenadas pela Montis, que desenvolvem um trabalho de acolhimento e dinamização de voluntariado para diversas actividades de conservação da natureza e biodiversidade.
Jule, alemã, é uma das voluntárias. Está a cumprir um ano sabático depois de terminado o ensino secundário e chegou a Portugal em Agosto para fazer voluntariado na floresta. “Vou ficar um ano cá”, disse ao PÚBLICO a jovem alemã, confiante de que pode ajudar a Montis no trabalho de conservação ambiental.
Paula também é alemã, de Dresden. Está a cursar Ambiente e Gestão Ambiental e chegou a Portugal em Setembro. Questionada sobre se está a gostar da experiência de voluntariado em Portugal, tem a resposta pronta: “Seguramente.”
Igualmente envolvido no voluntariado da Montis, Hugo Silva, 22 anos, aluno do mestrado em Biologia da Conservação da Universidade Évora, conta ao PÚBLICO como as contingências da pandemia o fizeram adiar a tese no arquipélago das Galápagos, no Equador.
“Como não consegui ir e tive este ano livre, decidi-me por este tipo de actividade.” No futuro, não tem dúvidas: “Quero estar ligado à conservação da natureza e ao desenvolvimento das comunidades.”
Ser donos disto tudo
Para levar avante todo o trabalho de gestão florestal que tem em mãos, quer nos terrenos próprios, quer nos que tem sob gestão, a Montis socorre-se de várias fontes de financiamento. Entre elas, o crowdfunding. Desde que foi criada, a associação já lançou mão a várias campanhas, com o fim, sobretudo, de proceder à aquisição de terrenos.
Em 2014 arrancou a primeira campanha. Deram-lhe o sugestivo nome “E que tal sermos donos disto tudo?”. Tinha como objectivo angariar 12 000 euros, mas reuniu 16 750, através de donativos de 255 apoiantes.
Seguiu-se a campanha de 2016, inspirada numa canção de Pedro Abrunhosa: “E tu e eu o que temos de fazer?”. Pretendia alavancar recursos para a gestão das propriedades para uma intervenção estratégica, aumentando a velocidade da recuperação da vegetação e aumentando as zonas de refúgio para a fauna. E ainda tinha o objectivo de obter recursos para a execução de actividades através do envolvimento da comunidade na gestão das propriedades. Queriam angariar 16 581 euros, mas reuniram 17 131.
“Sai o que semeia a semear”, a terceira campanha de crowdfunding, em 2017, tinha o propósito de reunir verbas para um programa de sementeira de bolotas, tirando partido do comportamento armazenista dos gaios, monitorizado através de foto-armadilhagem. Tudo para o reforço da expansão dos carvalhais, principalmente em zonas em que a regeneração é menor e o acesso mais dificultado. Também aqui, o objectivo inicial foi superado: ultrapassados os 2300 euros, o total angariado ficou-se pelos 2680.
No ano passado lançaram mais uma campanha nesta modalidade, “Como coisa que nos é cedida”. As verbas, destinadas à compra de terrenos na Pampilhosa da Serra, galgaram a meta de 29 195 euros, atingindo os 30 618, de 313 apoiantes declarados e mais 87 anónimos.
“Queremos ser muito transparentes”
Ao todo a Montis, em seis anos de actividade, já angariou 67 179 euros através de campanhas de crowdfunding. Teresa Gamito é taxativa: “Queremos ser muito transparentes no que fazemos.” E isso passa pela disponibilização de informação no website da Associação – “Sobre o que fazemos, as propriedades que gerimos e respectivos relatórios de gestão, a descrição dos vários projectos onde entrámos, os relatórios e contas e planos de actividades, etc.”
Pedro Oliveira, o presidente da Montis, complementa: “O crowdfundig é apenas uma forma de financiamento dos nossos projectos. Não sendo a única, não deixa de ser uma alavanca importante e crucial para a implementação da nossa actividade, mas são precisos mais apoios.”
Ainda assim, as campanhas “têm tido bastante receptividade”. “Porque já demos provas do que fazemos, pela nossa transparência e por envolvermos a comunidade nos processos de gestão”, acrescenta o biólogo, explicando que estão “sempre à procura de quem queira financiar” as suas actividades e projectos.
Primeira aguardente de medronho após o incêndio
Entre as espécies arbóreas plantadas nos terrenos geridos pela Montis está o medronheiro. O fruto que dele cresce – passa de tons verdes para amarelados, alaranjados e, por fim, avermelhados – está a assumir “crescente expressão” na região, nota Teresa Gamito. Quer como fonte de receita familiar, quer como elemento de equilíbrio e diversidade ambiental e como elemento protector dos montes contra os incêndios.
Ao passeio de Outono que o PÚBLICO integrou na Pampilhosa da Serra à cata dos medronhos, juntou-se Carlos Fonseca, da Cooperativa Portuguesa do Medronho e sócio da Medronhalva, de São Pedro de Alva, concelho de Penacova. A empresa dedica-se à cultura do medronheiro em modo biológico e de outras espécies mediterrânicas, tendo em vista a sua valorização económica, social, ecológica e cultural.
Hoje já tem 20 hectares de medronheiros, que lhe garantiram 100 quilos de fruto em 2019 e cerca de 800 quilos este ano. “Quando estivermos em velocidade de cruzeiro, deveremos conseguir atingir entre 35 a 40 toneladas por ano”, revela ao PÚBLICO Carlos Fonseca. A média é de “duas toneladas por hectare”.
A 15 de Outubro quiseram homenagear “cada uma das pessoas, empresas e instituições” que os “ajudaram, de uma forma voluntária, a reerguer das cinzas”, após o “fatídico incêndio de 15 de Outubro de 2017”. Nasceu, então, a primeira aguardente de medronho Terras de Mondalva, feita a partir “das dezenas de quilos de medronhos biológicos” colhidos no Outono de 2019, e distribuída gratuitamente numa edição numerada e personalizada a cada uma das pessoas e entidades homenageadas.
O responsável da Medronhalva não tem dúvidas de que “as pessoas estão cada vez mais a olhar para o medronheiro como uma espécie com rentabilidade associada”. E a região do Pinhal Interior tem “um potencial natural” para esta cultura, diz.
Serra acima, Carlos Fonseca sublinha: “Portugal é o maior produtor de medronho do mundo porque os outros [países] ainda não abriram os olhos para isto.” Aliás, “o país todo tem aptidão natural para a cultura do medronheiro”, mas há certas regiões mais vocacionadas para a sua produção. “Aqui, no Pinhal Interior, e no Algarve, toda esta mancha natural tem enorme potencial”, refere, notando que “os desafios são extraordinários”, inclusive ao nível da exportação.
Para além da aguardente de medronho, a empresa que gere também produz licor. E em Outubro lançaram-se numa aventura nova: a produção de Medrovka, vodka de medronho.
REN: custos de manutenção mais baixos
Portugal ganha novas áreas de plantação de medronheiros de dia para dia. Questionado pelo PÚBLICO, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) revelou que, ao abrigo do Regime Jurídico de Ações de Arborização e Rearborização, já foram “autorizados/validados, cerca de 2951 hectares [de terras] com recurso a medronheiro, maioritariamente no Algarve, seguindo-se a região Centro e o Alentejo”.
Inusitadamente, a REN - Redes Energéticas Nacionais é um dos grandes promotores de plantação de medronheiros em Portugal. Desde logo porque detém “quase 10 mil quilómetros de servidões de linhas eléctricas e gasodutos” em todo o território continental que precisa de limpar e preservar, cerca de 60% das quais “inseridas em espaços florestais”.
João Gaspar, responsável da área de Servidões e Património da REN, revelou ao PÚBLICO que, desde 2010, a companhia plantou “mais de um milhão de árvores, numa área superior a 3000 hectares”.
No final de 2019, a REN já tinha mais de 500 hectares de medronheiros plantados. Espera plantar até ao final da presente época de plantação (Abril/2021) “mais de 240 hectares”, destacando-se “um projecto em Penacova com cerca de 130 hectares”.
A empresa tomou uma decisão estratégica: “substituir espécies de rápido crescimento por espécies autóctones, mais resistentes ao risco de incêndio”, tendo sido “abrangidos mais de 15 mil proprietários”.
João Gaspar explica ao PÚBLICO: “Olhamos para este projecto como uma vantagem para todos. Ganha a REN porque tem custos de manutenção mais baixos e está a promover a manutenção e preservação da biodiversidade; ganham os proprietários dos terrenos, que retiram rendimento das suas terras e estão a criar valor na floresta; ganha o país porque promove uma floresta autóctone mais resiliente aos fogos florestais.”
Do monte para a destilaria
Da árvore para o balde, para o jipe e para a destilaria. Lenda da Beira é a marca da empresa criada em 2011 por José Martins, em Pampilhosa da Serra.
Na destilaria, que o PÚBLICO visitou, transforma os frutos colhidos na sua própria plantação – 50 hectares de medronheiros –, que dão origem a um dos produtos mais emblemáticos da região.
A aguardente sai do alambique com “45 graus de teor alcoólico” e, “haja produto”, tem capacidade instalada para destilar 500 litros por dia. Mas também lá produz licor e gin.
José Martins admite que este é “um fruto sazonal e que apenas consegue operar “três/quatro meses do ano”, pelo que, no resto do ano, para rentabilizar o investimento, destila outros produtos e espécies de frutos. O mel é um deles. Mas, também a cereja, o mirtilo ou o marmelo.
A destilaria da Lenda da Beira, no interior mais interior de Portugal, nasceu com dois propósitos: como “complemento da economia familiar” e para “criar inovação e valor”. E fá-lo em parceria com várias instituições, entre elas a Escola Superior Agrária de Coimbra, o Instituto Politécnico de Coimbra e a Universidade do Algarve.
Lamentando “o enorme mercado paralelo” associado à comercialização de aguardente de medronho, José Martins deixa um repto aos produtores de medronho da região: “É preciso muita divulgação e muito trabalho de marketing.”
Não estando em causa o escoamento do produto para “armazenistas, restaurantes, bares, garrafeiras e para particulares”, o fundador da Lenda da Beira gostava de ver “mais inovação nas marcas” para gerar “maior valor”.