QAnon e a utilidade das teorias da conspiração
Marjorie Taylor Green tornou-se a primeira congressista americana apoiante da QAnon. O enredo desta teoria da conspiração assemelha-se a um thriller político com laivos sobrenaturais.
Na madrugada de 4 Novembro, aquando das eleições americanas, uma pequena notícia pode ter passado despercebida aos observadores menos atentos (ou, pelo menos, àqueles que não vivem no Twitter). Marjorie Taylor Green, uma republicana do estado da Geórgia, tornou-se a primeira congressista americana apoiante da teoria da conspiração conhecida como QAnon.
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Na madrugada de 4 Novembro, aquando das eleições americanas, uma pequena notícia pode ter passado despercebida aos observadores menos atentos (ou, pelo menos, àqueles que não vivem no Twitter). Marjorie Taylor Green, uma republicana do estado da Geórgia, tornou-se a primeira congressista americana apoiante da teoria da conspiração conhecida como QAnon.
O enredo desta teoria da conspiração assemelha-se a um thriller político com laivos sobrenaturais. Resumindo: a elite política americana é composta por uma rede de pedofilia satânica que rapta, tortura e assassina crianças. Ao vencer as eleições de 2016, Donald Trump entrou “na boca do lobo”, colocou-se na posição privilegiada de denunciar o crime e está, neste momento, a preparar milhares de mandados judiciais. Um indivíduo, “Q”, trabalha nas profundezas do aparelho do Estado, conhece o plano do Presidente e pretende ajudá-lo. É um whistleblower anónimo que utiliza fóruns online para publicar informações, pistas e previsões de acontecimentos futuros. Os apoiantes desta conspiração dedicam-se a coleccionar e interpretar as pistas de “Q”. O objectivo final? “A Tempestade”: o glorioso dia em que Trump vencerá as elites que o rodeiam e derrotará os satanistas.
Os EUA sempre foram terreno fértil para teorias da conspiração. O primeiro third party americano, o Anti-Masonic Party, fundado no início do séc. XIX, acreditava que os maçons dominavam as elites culturais e políticas. Além disso, muitas das teorias da conspiração mais conhecidas são orgulhosamente americanas: a NASA não foi à Lua; o Presidente Kennedy foi assassinado pela CIA; os atentados de 11 de Setembro foram um inside job. E agora, em pleno séc. XXI, temos o privilégio de assistir ao nascimento de mais uma: a QAnon.
Como muitas outras teorias da conspiração, a QAnon é uma convergência estapafúrdia de más ideias, ora hilariantes, ora aterradoras. É uma seita apocalíptica: tem muito de culto evangélico, com um combate entre Deus e Satanás e a promessa de um Juízo Final. É um culto de personalidade: Donald Trump protagoniza a narrativa como um messias justiceiro. É uma reciclagem de teorias da conspiração anteriores: a ideia de que as elites se alimentam da “energia” de crianças remete para o libelo de sangue, uma antiga superstição segundo a qual os judeus utilizavam o sangue de crianças cristãs nos seus rituais religiosos. Mas a QAnon é, também, uma gincana online e um jogo interactivo.
É claro que as teorias da conspiração nunca precisaram da Internet para se difundir. Mas a QAnon, nascida em fóruns online, sabe servir-se do imediatismo e da rapidez do seu habitat natural. Propaga-se com facilidade e adapta-se às circunstâncias. Todos os dias há novas pistas de “Q”, novos memes, novas ligações entre factos aparentemente inócuos. Qualquer notícia pode ser interpretada à luz da conspiração, como uma profecia de Nostradamus. Assim, o jogo nunca acaba; e o crente, chamado a participar a toda a hora, sente a adrenalina de estar a mudar o mundo a partir do seu computador.
Como interpretar um fenómeno como a QAnon? Tradicionalmente, as teorias da conspiração não são levadas muito a sério. Os terraplanistas, por exemplo, são bastante inofensivos, ainda que alimentem uma contraproducente desconfiança na ciência. Patuscos e excêntricos, muitos teóricos da conspiração divertem sem preocupar. Depois há os movimentos antivacinas, muito mais perigosos pelas suas consequências para a saúde pública. Mas, no geral, as teorias da conspiração são aquelas ideias loucas defendidas por indivíduos mal dormidos, paranóicos ou ignorantes. Rimos, temos pena e mantemos a distância.
Já a QAnon apresenta-se como uma religião emergente, um movimento político radical e uma incitação à violência e ao caos. Para os QAnon, Trump não só perdeu as eleições como foi afastado pelas elites satânicas que se propôs derrotar: não está em causa um processo democrático, mas sim a alma da América. A derrota de Trump em 2020 pode ditar o fim da QAnon ou, pelo contrário, o princípio de algo mais perigoso, já que muitos dos seus apoiantes pertencem à extrema-direita ou a outros grupos radicais. Em Maio de 2019, o FBI alertou para o facto de vários QAnons terem sido detidos e catalogou esta teoria da conspiração como uma possível fonte de terrorismo doméstico.
Tudo isto levanta um problema simultaneamente filosófico e prático: como combater esta (e, já agora, outras) teorias da conspiração? Uma coisa é a detenção de criminosos e a repressão de extremismos; mas como se derrotam as ideias que os alimentam?
No geral, a teoria da conspiração oferece uma explicação alternativa para o mundo, internamente consistente e fácil de digerir. Um evento passa a ser explicado como uma conspiração de forças nefastas e secretas, e pode ser algo tão simples como a ida à Lua ou tão complexo como uma crise pandémica. Como fenómeno, a teoria da conspiração tem muito de narrativo e mitológico. A história de Ícaro, com o seu voo demasiado perto do Sol, não faz sentido do ponto de vista científico; e, no entanto, ensina-nos algo. É a verbalização de uma intuição humana, a codificação de algo metafisicamente verdadeiro, ainda que factualmente errado. Por isso, é bem provável que as teorias da conspiração sejam uma Mitologia 2.0, isto é, que independentemente da sua relação com os factos e com a ciência, digam muito sobre as ansiedades, preocupações e medos do humano contemporâneo. Pensem nelas como bússolas ou alertas. São sintomas e não doenças.
Talvez por isso uma sociedade globalizada, altamente especializada e saturada em informação, dê origem a teorias da conspiração antiglobalização, anti-especialistas e anticonsenso. Ao longo dos séculos, o teórico da conspiração sempre reagiu à direcção aparente da História. E sempre encontrou, através de uma narrativa ficcional, uma ordem no caos e uma justificação para o injustificável.
Este instinto não é novo, nem é exclusivo dos teóricos da conspiração. Todos nós tomamos como certo algum erro factual ou interpretação enviesada. Todos já sentimos o conforto de pertencer a uma tribo ideológica, bem como o desconforto perante aquilo que a contradiz. Quanto maior o investimento na teoria da conspiração, mais o teórico tem a perder caso esteja errado e maior a sua resistência a ideias novas. Encontramos a mesma tendência na política partidária, nas cisões religiosas, nas discussões futebolísticas ou, até, em jantares de família: ninguém gosta de ser corrigido e todos preferem ter razão. O que nos separa dos teóricos da conspiração não é tanto a natureza do fenómeno psicológico mas sim a sua escala. Somos mais parecidos com “eles” do que gostaríamos de admitir.
Paradoxalmente, podemos vir a descobrir que a única forma de derrotar as teorias da conspiração é aproximarmo-nos dos seus crentes. É claro que a violência, ou a incitação à mesma, são intoleráveis. Mas antes de serem radicalizados a esse ponto, os apoiantes das teorias da conspiração são vítimas de péssimas ideias. Tal como membros de seitas ou cultos, estão presos a uma estrutura de pensamento que primeiro seduz, depois convence e, finalmente, controla.
Nesse sentido, um confronto directo e agressivo pode não ser eficaz. Não é surpreendente que o teórico da conspiração reaja mal a ser parodiado ou acusado de ignorância e malvadez. Afinal, quem o aceitaria? Quem veria nisso um bom incentivo para alterar a sua convicção mais profunda? Será necessária uma mistura cuidada de informação, tolerância, educação e paciência.
Mesmo antes de ser eleita, Marjorie Taylor Green afastou-se publicamente da QAnon e de outras teorias da conspiração que defendera no passado. Isto sugere-nos que há, ainda, um preço social a pagar por parte de quem defende estas ideias. O teórico da conspiração continua a ser mal visto: mas por quanto tempo? Ficaremos (cada vez mais) reféns da sua excentricidade e ignorância? Ou conseguiremos atacar as teorias sem, no entanto, convencer os seus teóricos de que o mundo está mesmo contra eles?