Residência alternada não é dogma, pois claro! Boas-vindas à Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro

A Lei n.º 65/2020 demarcou-se de um mito perigoso: o mito da residência alternada dos filhos como benéfica para eles e estimuladora do bom exercício das responsabilidades parentais para os progenitores. Cumpre saudar a sua inequívoca modernidade, o seu imenso progressismo.

1. A publicação da Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro, representa um passo muito corajoso e importante na defesa dos Direitos das Crianças.

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1. A publicação da Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro, representa um passo muito corajoso e importante na defesa dos Direitos das Crianças.

A lei, que entrará em vigor no dia 1 de dezembro, clarifica que é o superior interesse de cada criança concreta que deve ser atendido quando o Tribunal define a modalidade da sua residência quando os pais se separam. O Tribunal definirá, em função das circunstâncias, qual a modalidade de residência que é mais favorável ao seu desenvolvimento cognitivo e afetivo, mais adequado às suas regularidades quotidianas.

E, sendo assim, a chamada residência alternada deverá ter lugar se, e só se, cumprir estes imperativos.

Ao excluir a residência alternada como critério preferencial, a Lei optou, bem, por não estabelecer nenhuma regra geral, baseada em preconceitos, ingenuidades ou mitos, por melhores que fossem as intenções subjacentes, quando está em causa o desenvolvimento de crianças cuja vida familiar se perturbou em razão do divórcio dos progenitores.

A Lei n.º 65/2020 demarcou-se de um mito perigoso: o mito da residência alternada dos filhos como benéfica para eles e estimuladora do bom exercício das responsabilidades parentais para os progenitores.

O processo legislativo, longo, não cedeu a pressões pouco informadas ou menos amadurecidas quanto aos problemas que os Direitos das Crianças enfrentam.

2. A residência alternada como regime preferencial, sobrepondo um critério geral e abstrato à averiguação casuística dos problemas emergentes em cada situação, representaria um evidente desrespeito pela Convenção sobre os Direitos da Criança.

É bem oportuno recordar que o artigo 3.º, n.º 1, da Convenção, afirma que “Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.

Ao interesse das crianças não se sobrepõem, no cumprimento da Convenção, nenhuns outros.

É o Tribunal, e só ele, com a máxima isenção e distanciamento face aos dilemas concretos dos progenitores, que deve decidir se esta residência deve ser a residência da mãe ou a do pai: caso a caso, sempre de acordo com aquilo que é mais favorável a cada criança.

3. Distinguiu claramente a Lei entre o modelo de vida das crianças após o divórcio dos progenitores que se deseja construir e a realidade que se enfrenta hoje.

Para os progenitores devem ser encontradas medidas que contribuam para que sejam bons progenitores? Sem dúvida que sim.

Isso passa por implementar o seu contacto e responsabilidade para com os filhos? É inquestionável.

A partilha de responsabilidades contribui para a divisão equitativa de tarefas dos progenitores e, nessa medida, para uma oneração igualitária de ambos? Rutilantemente de acordo.

Mas as intenções não resolvem problemas jurídicos concretos.

A residência alternada das crianças vai, sem dúvida, em muitos casos, ao encontro do seu bem-estar. Assim acontece quando os progenitores, não obstante separados, se entendem quanto à educação dos filhos; quando os progenitores sobrepõem a racionalidade de decidir o que é melhor para as crianças às emoções e aos dilemas provocados pela sua vida comum que se dilacerou.

A residência alternada é também fácil quando os progenitores têm condições de vida que lhes permitem agilizá-la sem ónus excessivo para eles e para as crianças.

Porém, o mundo prototípico dos ex-casais portugueses e dos seus filhos não corresponde a este quadro algo idílico e sobretudo proporcionado aos mais favorecidos socialmente.

A generalidade dos progenitores não dispõe de horários flexíveis, não dispõe de amplas ajudas na vida doméstica. Não tem como pedir a um terceiro que entregue a criança ao outro progenitor, quando isso lhe é impossível.

E para quem não possui o conforto social e financeiro que agiliza a residência alternada em momentos mais difíceis, ela redunda num problema sério que se reflete sobre as regularidades das crianças, sobre o seu bem-estar.

4. A Lei n.º 65/2020 atendeu igualmente, ainda que de forma indireta, às imensas afrontas que os Direitos Humanos das Mulheres sofrem, também com este problema da residência dos filhos, após o divórcio.

Pois o mundo da generalidade das famílias é o mundo que a Convenção de Istambul tão incisivamente definiu.

O mundo da dura realidade: a vida familiar exprime relações de poder endémicas. E, nessas relações de poder, a discriminação impende sobre as mulheres, estatisticamente muito mais vulneráveis a violência doméstica. E o mesmo se passa com as crianças do sexo feminino, as meninas, tendencialmente mais vítimas de violência doméstica também.

O direito da família português já deu passos importantes neste sentido. Assim, a Lei n.º 24/2017, de 24 de maio, introduziu no regime jurídico do exercício das responsabilidades parentais um conjunto de disposições visando proteger e acautelar os direitos das vítimas de violência doméstica.

Importa consolidar os seus resultados e ir mais longe em matéria tão relevante quanto grave e delicada.

Recordo que o Comité GREVIO, que monitoriza a aplicação da Convenção de Istambul, fez importantes recomendações legislativas para acautelar os direitos das crianças vítimas de violência doméstica.

Assim, as recomendações A36 e A37 instam o Estado Português a que tome medidas legislativas assegurando que os Tribunais de Família averiguem obrigatoriamente a eventual existência de violência doméstica quando da regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Ora, é muitíssimo errado assumir a “favorabilidade” da residência alternada das crianças, sempre que a sua mãe tenha experimentado a violência doméstica na sua relação familiar.

Com que fundamento jurídico se atribui a alternância, em tais casos, da residência das crianças, repartindo a sua vida entre a casa do progenitor/vítima e do progenitor/autor desta violência? Uma violência que, na maioria dos casos, a criança conheceu, presenciou?

O afastamento de um perigoso estereótipo de residência alternada como “residência boa”, melhorista das relações entre pais e filhos, foi, também neste domínio, assumido pela Lei n.º 65/2020.

Cumpre saudar a sua inequívoca modernidade, o seu imenso progressismo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico