“Se quiserem continuar com cirurgias programadas, vão morrer doentes graves”
“Se chegarmos à situação de catástrofe, teremos que passar da lógica individual de dar tudo por um doente para dar tudo ao maior número possível de doentes”, avisa João Gouveia, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos.
"Alguns hospitais já estão em situação de ruptura, enquanto outros que acham que ainda estão em Agosto", critica o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva, João Gouveia, que está deveras preocupado com a situação que já se vive em muitas unidades. O esforço é muito assimétrico e “desequilibrado” a nível nacional. “Não pode haver hospitais que cortam 30% das cirurgias programadas quando outros já cortaram 80%”, defende o médico que também preside à Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a covid-19.
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"Alguns hospitais já estão em situação de ruptura, enquanto outros que acham que ainda estão em Agosto", critica o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva, João Gouveia, que está deveras preocupado com a situação que já se vive em muitas unidades. O esforço é muito assimétrico e “desequilibrado” a nível nacional. “Não pode haver hospitais que cortam 30% das cirurgias programadas quando outros já cortaram 80%”, defende o médico que também preside à Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a covid-19.
A situação já é de ruptura nas unidades de cuidados intensivos? Qual é a capacidade máxima, afinal?
Não sei qual será o número total real de camas até porque todos os dias conseguimos mais, mas estamos muito dependentes dos recursos humanos. Na primeira vaga, foi diferente, estava tudo fechado. Agora, alguns hospitais já estão em situação de ruptura, enquanto outros que acham que ainda estão em Agosto e estão empenhados em recuperar listas de espera de cirurgias e consultas [não urgentes]. Se tivermos seis mil casos por dia, considerando que 0,5% vão para cuidados intensivos, são 30 doentes novos em cada dia. Neste momento, só há uma hipótese: o cobertor ou tapa os pés ou o queixo. Temos que conseguir ganhar folga até que as medidas surtam efeito. É preciso suspender actividade programada, parar cirurgias e mobilizar profissionais [para cuidados intensivos]. Se quiserem continuar com as cirurgias e as consultas programadas, vão morrer doentes graves. O esforço tem que ser comum, os hospitais têm que ser solidários. Não pode haver hospitais que cortam 30% das cirurgias programadas quando outros já cortaram 80%. Além disso, alguns não se prepararam e não constituíram equipas [ao longo dos últimos meses]. Mas também não é fácil, os recursos humanos não nascem nas árvores, não há médicos e enfermeiros em número suficiente para constituir equipas.
Isso significa, portanto, que os hospitais não estão a funcionar em rede?
Há uma rede de referenciação que funciona com eixos e pólos de rede que são os hospitais centrais, como o Santo António e o São João, no Porto, os centros hospitalares de Coimbra, de Viseu, os de Lisboa Norte, Lisboa Central e Lisboa Ocidental, o do Algarve e o hospital de Évora. Em teoria, deve haver referenciação ao longo do eixo. Mas neste momento alguns estão já no nível de alerta máximo e outros não. Isto significa que há um esforço desequilibrado e implica que alguns não queiram aceitar doentes de outro hospital porque acham que aquele ainda não fez tudo o que podia fazer. É preciso que os hospitais subam o nível de alerta [do plano de contingência], não necessariamente para o último mas eventualmente para o penúltimo, e que percebam que têm que receber doentes de outras áreas. O CHUC [Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra] tem 19 camas de cuidados intensivos ocupadas com doentes covid, o que é muito pouco para um hospital com aquela capacidade.
Se chegarmos ao limite, vai ser necessário escolher que doentes irão para cuidados intensivos. Como se faz essa escolha? O Conselho de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos já divulgou um parecer sobre esta matéria.
Se chegarmos à situação de catástrofe, haverá uma inversão da lógica habitual, teremos que passar da lógica individual de dar tudo por um doente para tentar dar tudo ao maior número possível de doentes. Triamos e avaliamos os que podem beneficiar mais. É a lógica do bem comum. Temos um parecer técnico, prático, sobre o que fazer em caso de catástrofe que já está elaborado desde Fevereiro, Março, e que está guardado porque não queremos lançar o pânico. Estamos em concertação com a Ordem dos Médicos, que vai elaborar uma orientação [técnica] mais generalista, não tão operacional. A idade é levada em conta mas também é considerado todo um conjunto de factores, como o grau de fragilidade do doente, se há falência renal, insuficiência respiratória, disfunção neurológica, se consegue ou não andar sozinho.
A comissão a que preside também reclamou a contratação de mais fisioterapeutas para as equipas e mais espaços para cuidados paliativos.
Sim, conseguimos ter alguns fisioterapeutas, dependendo dos hospitais. Mas ter cuidados paliativos com qualidade já se revelou mais difícil. Era importante que fossem criados mais espaços para cuidados paliativos. Sem estes espaços, os doentes morrem nos cuidados intensivos ou nas enfermarias. Em alguns casos deixamos que os familiares passem alguns momentos com o doente mas isso nem sempre é possível, é esporádico.