Passou o tempo de nos tocarmos e apaixonarmos
Sabermos que tudo acaba não nos permite o dom da paciência e, por culpa dessa impaciência, o que antevíamos atacou mais cedo e mais forte. A maresia a encher os pulmões foi substituída pela falta de ar que as medidas de emergência anunciam. Ainda não estamos confinados e já custa a respirar.
Outra vez? Quem estiver farto como eu não precisa de continuar. Em Abril pensavam declarar o último estado de emergência, e aqui estamos nós, outra vez.
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Outra vez? Quem estiver farto como eu não precisa de continuar. Em Abril pensavam declarar o último estado de emergência, e aqui estamos nós, outra vez.
Enquanto a Primavera caminhava para o solstício de Verão, fomo-nos adaptando gradualmente, agarrando com força a mão (depois de devidamente desinfectada) de quem mais precisávamos de abraçar. Com os dias maiores e os convívios mais frequentes, os noticiários foram deixados para trás. Praias sem rede eram as predilectas e conversas sobre a pandemia tornaram-se entediantes. Já sabemos que é grave, que não se vai embora tão cedo e temos a frustração de nada a fazer além daquilo que já fazemos. A época balnear foi uma interrupção desta realidade, o sonho de uma normalidade que não sabemos se/quando vamos recuperar. Quando, num mergulho, o cheiro do protector solar na minha pele quente entrava em contraste com o sabor do mar gelado, todas as preocupações se dissolviam em gotas no oceano. No entanto, o fado do Verão é que dá lugar ao Outono, todos os anos. Este não seria diferente. A janela de oportunidade, o tempo para nos tocarmos, rirmos sem máscara e nos apaixonarmos, nunca foi tão curta. E por isso a urgência em viver tudo isso.
Se calhar é esse o nosso mal. Sabermos que tudo acaba não nos permite o dom da paciência, e por culpa dessa impaciência, o que antevíamos atacou mais cedo e mais forte. A maresia a encher os pulmões foi substituída pela falta de ar que as medidas de emergência anunciam. Ainda não estamos confinados e já custa a respirar. Os deveres cívicos e as obrigações lembram-nos coisas que nunca vivemos, apenas lemos. Existe, na literatura para jovens adultos, a ficção distópica, um futuro em que a democracia é corrompida e a liberdade, normalmente, é algo pelo qual se tem de lutar ao longo de uma trilogia. Os que nunca leram podem dar por si a ceder a extremismos, a escalarem o seu egoísmo, a disseminarem fake news, a oprimirem na crença de que isso faz deles menos oprimidos e a pôr em causa o sistema de voto, abrindo espaço para totalitarismos. Mas os que leram sabem o que fazer!
O inimigo comum é a melhor táctica de união inventada, qualquer pessoa pode dizer “Vai ficar tudo bem”, o problema são as reacções geradas, cada vez mais díspares. Para a eficácia desta estratégia é preciso gerar o medo. E, neste momento, a covid-19 não é a única coisa que há a temer… Nunca gostei de filmes de terror. Inibem-me de dormir quando a noite chega e de andar sem luzes acesas. Agora faz escuro antes das 18h e o recolhimento obrigatório é às 23h.
A palavra latina crisis nasceu no meio médico, caracterizando-se por ser um momento decisivo na “evolução de uma doença para a cura ou para a morte”, ou seja, uma fase de transição e de mudança difícil. Portanto, uma crise de saúde (pública) é quase uma redundância na sua etimologia. E esta veio de mãos dadas com o significado contemporâneo de crise, a económica e, consequentemente, a social. E, numa tempestade perfeita, nada fica para trás, por isso o existencialismo, formalizado pelos filósofos do século XIX, não podia ser esquecido. A crise existencial é a cereja no topo deste bolo de doenças físicas.
A preocupação não se prende só com o que vem a seguir. Trabalho ou estudo? Como? A ansiedade é também desencadeada pelos ataques terroristas, pela incerteza do futuro do planeta e a rapidez com que se corrompe a compaixão. Até a criatividade é tantas vezes sugada neste corrupio de inquietações.
“Estar” tem agora mais restrições em cima e “ser” tornou-se um esforço activo. Somos obrigados a repensar com quem queremos arriscar estar, com quem e em que termos podemos partilhar a vida. Ceder à solidão é desistir, é ser dominado por um sistema que não nos serve. Ir para a rua, falar com os nossos, sorrir a estranhos (mesmo que seja só um enrugar dos olhos), lançar pontes, é desafiar o sistema. Talvez seja mesmo isto: redescobrir a empatia.