Naomi Oreskes: “Quando ignoramos os dados científicos, pomo-nos em perigo”

Professora de história da ciência na Universidade de Harvard (EUA), Naomi Oreskes tem feito uma reflexão sobre as razões porque podemos confiar na ciência – uma questão que o novo coronavírus e a pandemia da covid-19 puseram novamente na berlinda.

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Tornou-se particularmente conhecida a partir de um artigo na revista Science em 2004, intitulado “Para lá da torre de marfim: o consenso científico sobre alterações climáticas”. Nesse artigo, Naomi Oreskes quantificou o consenso científico existente em torno das alterações climáticas, desmontando a ideia enganadora de que a ciência do clima estava repleta de incerteza – uma estratégia seguida pela indústria dos combustíveis fósseis, que dessa forma semeava a dúvida, denunciou a professora de história da ciência em Harvard.

Mostrava assim que podíamos confiar na ciência do clima, porque havia (e há) um consenso na comunidade científica, obtido depois de muita crítica, muito debate e autocorrecção dos erros. E porque a ciência, embora não seja perfeita, é um processo colectivo, não é individual. Na análise de 2004 a 928 resumos de artigos científicos sobre alterações climáticas, publicados entre 1992 e 2003 com revisão prévia por outros cientistas, Naomi Oreskes concluía que nenhum contestava que os seres humanos estão a alterar o clima. Havia consenso, portanto. Tem também denunciado a dúvida semeada pelas tabaqueiras sobre os malefícios do tabaco. Dois dos diversos temas que explora no livro, em co-autoria com Erik M. Conway, Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Climate Change, de 2010.

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Capa da edição original do livro Porquê Confiar na Ciência, cuja tradução será publicada em 2021 pela Gradiva

O último livro, de 2019, Porquê Confiar na Ciência, será lançado em Portugal em 2021 pela Gradiva, em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que já teve Naomi Oreskes como oradora no Mês da Ciência e da Educação. “A ciência tem estruturas sociais muito robustas para identificar e corrigir o erro”, frisa a geóloga e historiadora nesta entrevista feita antes das eleições presidenciais dos Estados Unidos, em que defende que pandemia tornou mais óbvia as estratégias de ataque à ciência nos EUA. “São movimentos anticiência organizados com ligações fortes à ideologia de direita e à desregulação das indústrias.”

A pandemia da covid-19 trouxe alterações à relação entre a sociedade e os cientistas? Alterou a maneira como a sociedade vê a ciência?
É muito cedo para ter a certeza, mas uma das coisas perturbantes é o que vemos nos Estados Unidos com a actual Administração: o Presidente Trump foi mais longe na politização activa da ciência. Não apenas a rejeitar a ciência, mas a ridicularizá-la e até a referir-se aos líderes científicos como inimigos. O Presidente Trump referiu-se ao dr. Fauci [Anthony Fauci, director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA] como “um desastre”. Vimos uma resistência forte e entrincheirada aos conselhos de saúde pública da parte dos partidários republicanos. A situação da covid-19 trouxe à superfície algo que já existia nos EUA. Tornou-a mais óbvia e parece tê-la tornado pior.

Que condições conduziram a esse caminho de desvalorização, ridicularização e até ataque aberto à ciência?
Esse foi o tema do meu livro Merchants of Doubt. Mostro como think tanks conservadores – organizações ideologicamente motivadas que promovem o laisser fair económico, que promovem ideologias libertárias – trabalharam para desafiar as provas científicas em diversas áreas, como os malefícios do tabaco e a realidade das alterações climáticas. Fazem isso para apoiar uma ideologia conservadora, uma ideologia de um governo reduzido que permita ao mercado ser a força dominante na sociedade, ou uma ideologia libertária. Estas organizações foram largamente financiadas por indústrias, como a indústria do tabaco e a dos combustíveis fósseis, para impedir a regulamentação dos seus produtos. É uma estratégia muito explícita de ataque à ciência, porque a ciência fornece as provas que nos dizem que temos de regulamentar o tabaco ou que precisamos de fazer alguma coisa em relação às alterações climáticas. A covid-19 é apenas uma expressão extrema da hostilidade em relação à ciência que a direita tem cultivado nos Estados Unidos desde Ronald Reagan.

Essas estratégias de ideologia conservadora em relação à ciência estão a ser aplicadas noutros países? Ou são mais específicas dos Estados Unidos?
São específicas dos Estados Unidos, no sentido em que é aqui que vemos a expressão mais forte desta ideologia e deste comportamento. Em parte, porque politicamente os norte-americanos são mais susceptíveis ao argumento de que o governo é mau e que qualquer tentativa de lidar com os problemas de mercado é socialista. São argumentos antigos da cultura norte-americana que remontam aos anos 30 e à Grande Depressão. Como não temos um partido socialista, ao contrário de outros países, estes argumentos têm uma grande ressonância cultural nos Estados Unidos, maior do que na maioria dos países europeus.

Esta ideologia também encontra eco no individualismo norte-americano: os americanos têm uma cultura muito individualista, estão receptivos à ideia de que lhes deve ser permitido fazer o que quiserem. Por isso, estas pessoas cultivam um ressentimento em relação à ciência entre a direita norte-americana, alegando que os cientistas estão a tentar dizer às pessoas como têm de viver as suas vidas. Que os cientistas estão a tentar controlá-las. Como em muitas outras grandes mentiras, há pequenas verdades. Os cientistas estão a dizer às pessoas que devem usar máscaras, mas não estão a tentar a controlar as suas vidas. Estão a dar-lhes bons conselhos de saúde pública. Mas isto é distorcido na cultura norte-americana como uma negação da liberdade individual. Estes argumentos repercutem-se na cultura norte-americana.

Além disso, estes argumentos são largamente financiados por grandes empresas americanas de combustíveis fósseis, como a ExxonMobil e a Koch Industries, e de gigantes do tabaco norte-americanas, como Philips Morris ou R. J. Reynolds. Por isso, sim, vemos estes argumentos reproduzidos noutros lugares, por exemplo na Europa de Leste, nos países do bloco da ex-União Soviética, como a República Checa. Vemo-los até certo ponto ser reproduzidos por pessoas de direita no Reino Unido, na Alemanha e em França. Mas, em grande medida, é um fenómeno norte-americano e a extensão que vemos na Europa foi exportada a partir dos Estados Unidos. Sabemos que empresas norte-americanas, think tanks norte-americanos, exportaram estes argumentos para grupos com os quais trabalham. Por exemplo, em Inglaterra há um grupo chamado Institute of Economic Affairs e sabemos que trabalha de forma muito próxima com think tanks de direita nos Estados Unidos.

Essas ideias são repetidas tanto por movimentos organizados anticiência como por pessoas anónimas nas redes sociais?
Sim. O que temos são movimentos anticiência organizados com ligações fortes à ideologia de direita e à desregulação das indústrias. Promovem a desinformação de várias maneiras, fortemente na Internet e em campanhas de publicidade. Mas depois é apanhada espontaneamente por outras pessoas, incluindo por indivíduos que têm simpatia pela ideologia envolvida. E é disseminada nas redes sociais, que a tornam ainda pior.

Esse é o lado negativo da relação entre a sociedade e a ciência. Mas a pandemia da covid-19 não trouxe também esperança e confiança na ciência? Mais visibilidade aos cientistas?
Não penso que seja tudo mau. Sim, deu grande visibilidade a certos cientistas e responsáveis de saúde pública. Para muitas pessoas nos EUA, Fauci é um herói. Mas, mais uma vez, tende-se a cair em partidarismos. Penso que o melhor motivo para optimismos a longo prazo não está nos cientistas a nível individual, está no desfecho desta pandemia. Estamos a ver muito claramente que os países que levaram a sério os conselhos sobre saúde pública e implementaram programas robustos de testes, de rastreio de contactos e isolamento – o bom senso em termos de saúde pública em qualquer pandemia – estão a sair-se muito melhor no controlo da pandemia. Pouparam vidas e também protegeram a sua economia. A ideia de que era uma escolha entre a saúde e a economia era uma dicotomia falsa. Vemos que os países que protegeram a saúde da sua população também puderam abrir as suas economias mais rapidamente. O que os Estados Unidos fizeram foi uma situação que que todos perderam. Temos agora 300 mil mortes a mais nos EUA este ano, dois terços directamente relacionadas com a covid-19 e o outro terço indirectamente relacionado por danos associados às políticas projectadas. O Vietname, um país muito mais pobre, tem à volta de 100 mortes. É uma diferença chocante. Qualquer analista sério, qualquer economista sério, qualquer responsável de saúde pública, qualquer pessoa séria não pode dizer que os EUA não geriram bastante mal a pandemia. Uma grande parte desta má gestão deveu-se à rejeição de aconselhamento científico sólido.

Que outros países geriram crise pandémica muito melhor do que os EUA?
Ainda não se fizeram estudos detalhados, mas se olharmos para as taxas de mortalidade, muitos países saíram-se muito melhor do que os EUA, o que inclui outros países ricos, como a Alemanha, o que é de esperar. Mas também inclui países que não o são, como o Vietname, ou que estão no meio, como Taiwan, ou até a China. O caso da China é extraordinário, porque poderíamos pensar que teria as piores taxas de mortalidade, porque foi aí que este vírus emergiu primeiro. Foi aí que os médicos tiveram de lutar com um vírus que não era conhecido nem compreendido. Por isso, era de prever que teria a maior parte das mortes e que outros países sair-se-iam melhores, porque tiveram mais tempo para prepararem e perceberem o que estava a acontecer. É difícil saber com certeza, porque não sabemos com certeza se os chineses têm sido inteiramente honestos sobre a sua taxa de mortalidade, mas parece que a taxa de mortalidade na China é substancialmente mais baixa do que a que têm agora os Estados unidos. Isto é uma prova muito clara de que, quando ignoramos os dados científicos, pomo-nos em perigo. Qualquer pessoa honesta terá de reconhecer esta verdade.

Alguns países que mencionou não são democracias…
Tem razão. O Vietname não é uma democracia. Mas se perguntarmos o que têm em comum a China, Taiwan, Vietname ou Alemanha, que são muito diferentes, vemos que todos se saíram melhor do que os Estados Unidos. O que têm em comum não é serem totalitários. É terem tomado em consideração o aconselhamento científico e terem adoptado programas de aplicação desses conselhos, especificamente testes rápidos, rastreio de contactos e quarentena de pessoas com testes positivos. Isto não nada de novo. Há muito tempo que este tipo de estratégias funciona para conter epidemias. Ainda que o vírus da covid-19 seja novo, não deixa de ser um vírus e respiratório.

O que se deve fazer para lutar contra os movimentos de desinformação e anticiência? Ignorá-los e centrar os esforços na valorização da ciência?
É difícil dizer, porque muitos dos danos já foram feitos. Há muita desconfiança gerada. Quando se quebra a ligação da confiança, é difícil de reconstruí-la. Por isso, não acho que haja uma resposta simples sobre a solução para isto. Mas a comunidade científica tem de se empenhar a pensar sobre pode fazer para reconstruir estas ligações de confiança. Que tipo de actividades de divulgação os cientistas podem fazer nas suas comunidades, como é que podem trabalhar com as escolas, por exemplo. Na minha experiência, a maioria dos professores das escolas está desejosa de ensinar informação boa e não quer promover desinformação.

Além disso, temos de pensar nas nossas estruturas políticas: que mecanismos temos para lidar politicamente com esta desinformação, em particular com o papel da indústria dos combustíveis fósseis. O meu colega Geoffrey Supran testemunhou no ano passado no Parlamento Europeu sobre as campanhas de desinformação que têm sido feitas pela indústria dos combustíveis fósseis. É extremamente importante expor estas campanhas de desinformação, para que se possa compreender que isto não é porque as pessoas não são suficientemente instruídas, não é um problema de literacia científica insuficiente. É um problema essencialmente de propaganda. E a maneira como respondemos à propaganda é diferente da maneira como respondemos à ignorância.

Tem trabalhado muito sobre a confiança na ciência. Porque devemos então confiar na ciência? Porque devemos acreditar na ciência das alterações climática, na ciência das vacinas ou da covid-19…?
É o assunto do meu [último] livro. A resposta curta é que a ciência tem um bom registo histórico. A ciência moderna tem 400 anos de história e provou, na maioria dos casos, que é muito robusta e de confiança. Além disso, podemos dizer por que razão isso acontece e é o que o livro explica: a ciência tem estruturas sociais muito robustas para identificar e corrigir o erro. Isto é algo que penso que a educação científica não enfatiza suficientemente. Muito do que se escreve sobre ciência, muito do jornalismo de ciência centra-se nas grandes descobertas, em quem eram os indivíduos que fizeram as descobertas.

Se pensarmos no Prémio Nobel, ele foca-se em uma, duas ou três pessoas que fizeram algo importante – e isso também está bem, essas pessoas merecem os prémios. Mas, do ponto de vista da razão porque devemos aceitar, confiar ou acreditar nas coisas que elas dizem, a resposta então não está na grandeza do indivíduo. É um processo comunitário, um processo social, através do qual os cientistas se juntam e colectivamente fazem afirmações e submetem-nas à crítica, identificam erros ou imprecisões do trabalho e, depois, corrigem esses erros e afirmações. É importante que os cidadãos compreendam isso: os cientistas têm este processo e que é muito rigoroso, muito duro, que já dura há muito tempo e temos boas razões para acreditar que funciona. Também podemos identificar alguns casos em que não funcionou e no livro falo em pormenor do que podemos aprender de casos em que o sistema falhou [como na eugenia e na rejeição da teoria da deriva continental].

Como vê o papel dos media na criação de confiança na ciência?
Os media podem aumentar a compreensão do público sobre os processos sociais do trabalho científico relativos a uma determinada afirmação. Muita da atenção dos media é centrada em indivíduos – conhece-se uma pessoa que parece interessante e faz-se um perfil dela. Ou é centrada numa descoberta. Estas coisas são interessantes, mas dão uma impressão distorcida de como funciona a ciência. Gostaria de ver os jornalistas a prestar mais atenção ao processo do trabalho científico, a fazerem descrições mais exactas de como a ciência e os cientistas funcionam.

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Por exemplo, se houve uma disputa sobre um assunto, cobri-la e depois explicar como foi resolvida. Os cientistas adoram disputas. Mas é frequente fazer-se a cobertura da disputa e não do desfecho. Escrever um artigo a dizer que os cientistas não tinham a certeza sobre um determinado assunto e aqui está o que descobriram agora. Esse tipo de explicação permitiria aos leitores ter uma compreensão mais rigorosa do que realmente acontece. Muitos jornalistas dizem-me que têm de ser objectivos e pensam que ser objectivo significa que, se há uma disputa, têm de dar espaço igual a ambos os lados. Isso não é ser rigoroso. Em ciência, os dois lados quase nunca são opostos equivalentes. Gosto do que diz a Christiane Amanpour: que o objectivo dos jornalistas não deve ser a neutralidade, deve ser exactidão.

Há uma coisa interessante no último Prémio Nobel da Química. As vencedoras pela CRISPR foram mulheres – penso que é a primeira vez na história que são só mulheres. Houve muita cobertura dos media de como muitas pessoas estiveram envolvidas na descoberta da CRISPR. Fiquei contente, achei que foi um passo na direcção certa. A única coisa de que não gostei foi do facto de, quando finalmente temos mulheres vencedoras, termos de repente de ouvir todos os homens que estiveram envolvidos também. Muitas vezes os homens ganham e ninguém escreve uma história sobre todas as outras pessoas envolvidas nessa descoberta.

Em todos os Prémios Nobel são escolhidas só algumas pessoas, mas há dezenas ou até centenas de pessoas envolvidas nesse trabalho, que desempenham um papel vital porque, mesmo que não tenham feito a descoberta inicial, foram elas que fizeram os testes, verificaram os dados, apontaram erros. É esse processo que conduz a resultados fiáveis, que nós, cidadãos, temos de compreender. Do ponto de vista do cidadão, esse processo é, para mim, mais importante do que quem foi que primeiro teve a ideia.

Com a pandemia, o processo da ciência não ficou até mais exposto? Pudemos ver como se faz ciência e como evolui o conhecimento em tempo real, por exemplo em relação ao uso das máscaras
Sim, a única cautela que ponho aqui é que os cientistas estão sob uma pressão tremenda para obter respostas rapidamente. Isto é, de certa forma, anormal em ciência. Os cientistas normalmente têm o luxo do tempo. Esta é uma diferença importante. Além disso, há a pressão política. Muitos cientistas funcionam sem a pressão política que temos visto e há questões interessantes que resultam daqui. Muitos cientistas têm posto a circular pré-publicações, por causa da pressão para se ter informação depressa. Há debates sobre se isso é bom ou mau. Desde que se reconheça que esta é uma situação invulgar e que algumas das coisas não são necessariamente típicas, é uma boa oportunidade para observar os cientistas em acção e educar as pessoas sobre o processo científico.

Num artigo na Science em 2004 quantificou o consenso científico relativo às alterações climáticas. Este método pode ser aplicado a outras questões científicas, como por exemplo já ao novo coronavírus?
Sem dúvida. Este método é um princípio, pode ser aplicado a qualquer questão que queiramos ou precisemos de saber. Há consenso e, se há, qual é? Os cientistas nem sempre concordam e, quando isso acontece, é importante compreender a origem desse desacordo. No entanto, quando os cientistas estão de acordo, saber isso permite-nos ripostar a quem usa a “falta de consenso” como retórica negacionista.