Anti-racismo e os perigos do complexo white saviour

Em prol de uma perspectiva humanitária universalista, esconde-se uma incapacidade de análise sobre posições de privilégio étnico-racial e de classe.

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Paulo Pimenta

Os últimos meses têm sido cruciais para a disputa de narrativas sobre a ordem das coisas. Vimos milhares de pessoas a encher as ruas para exigir justiça social e a insurgirem-se contra a violência racista estrutural, contra as desigualdades inerentes às nossas sociedades que servem para a manutenção das dinâmicas de poder.

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Os últimos meses têm sido cruciais para a disputa de narrativas sobre a ordem das coisas. Vimos milhares de pessoas a encher as ruas para exigir justiça social e a insurgirem-se contra a violência racista estrutural, contra as desigualdades inerentes às nossas sociedades que servem para a manutenção das dinâmicas de poder.

Esta luta por emancipação tem vindo a ser um ponto congregacional para muitos e muitas, permitindo olhar para uma nova forma de organizar a sociedade que tenha em vista a união e coesão social.

No entanto, às vezes é nos meandros da luta por justiça que surgem fenómenos muito insólitos, especialmente no que toca à visão sobre pessoas negras. O fenómeno do complexo white saviour entra delicada e inconscientemente nos nossos espaços progressistas, pondo em causa o trabalho colectivo que se pode vir a construir.

Quando nos referimos a este evento social, referimo-nos a pessoas brancas que pretendem fazer a luta anti-racista numa lógica de proveito próprio. O reconhecimento discursivo das opressões generalizadas sentidas por determinadas comunidades não é, nestes casos, acompanhado pela cedência de lugares centrais na construção de trabalho político. Pressupõe a incapacidade das comunidades racializadas de resolver os seus problemas sociais, de um ponto de vista muito semelhante à misericórdia apregoada pela Igreja Católica.

O complexo de white saviour não é novo na nossa sociedade. Na verdade, surge de um longo processo de colonização dos países africanos por parte da Europa, numa missão de exploração de recursos, branqueado pela ideia de missionação cultural e de expansão civilizacional. Este processo mantinha uma relação de dependência económica com as capitais de império.

Também pretendia salvar as pessoas de si mesmas, pois eram consideradas naturalmente vis e desumanas, necessitando de ser, portanto, humanizadas. Chimamanda Ngozi Adichie, a autora da aclamada TED Talk The Danger of a Single Story integra o modo como esta desumanização de grupos sociais “impõe a assimilação a estereótipos ultra-simplificados”, mantendo a construção identitária de pessoas negras, como a definida pela narrativa construída pelas narrativas brancas que dominam a sociedade.

São estes moldes que muitas campanhas de ajuda humanitária têm seguido. Olhamos, por exemplo, para diversos programas de voluntariado que se comprometem a mitigar muitos problemas sociais em África, que se referem às situações de pobreza vivenciada nalgumas localidades destas regiões. Estas iniciativas, muitas vezes muito custosas para os participantes, são conhecidas por “ficarem bem no currículo”, não reconhecendo muitos dos efeitos prejudiciais que acabam por consagrar nas comunidades em que operam, mantendo, de novo, esta dependência económica.

Também em espaços de militância de esquerda, maioritariamente brancos, se reflectem estas dinâmicas. Em prol de uma perspectiva humanitária universalista, esconde-se uma incapacidade de análise sobre posições de privilégio étnico-racial e de classe. 

No entanto, só a partir deste compromisso real com a destruição das estruturas supremacistas na nossa sociedade, que nasce de uma postura conscientemente crítica, será possível emancipação social e a construção de um país activamente anti-racista.