Recolhimento obrigatório: o passo antes do confinamento
Estamos perto do agravamento das medidas que limitam ainda mais as nossas liberdades individuais. Isso acontecerá perante a ocupação das camas de internamento – sobretudo em cuidados intensivos – por doentes com covid, enquanto se agrava mais ainda a resposta às outras doenças crónicas e infeciosas. Ninguém sabe se as medidas atualmente em vigor serão suficientes. Os primeiros sinais surgirão até ao final da próxima semana.
Sem medo nem rodeios é preciso dizer que o recolher obrigatório agora em vigor é o passo que nos separa de confinamentos mais musculados. Não se trata de incutir medo. É o que é nas atuais circunstâncias e é o que se assiste na Europa.
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Sem medo nem rodeios é preciso dizer que o recolher obrigatório agora em vigor é o passo que nos separa de confinamentos mais musculados. Não se trata de incutir medo. É o que é nas atuais circunstâncias e é o que se assiste na Europa.
Em Portugal não será diferente e para aí apontam as projeções de rutura da prestação de cuidados já nas próximas semanas. Isto apesar da elasticidade e do funcionamento em rede que o Ministério da Saúde procurou imprimir no interior do SNS e na relação com os setores social e privado. Deixo para outros a discussão sobre se fizemos tudo a este nível. Faço apenas dois reparos: o ping-pong de acusações entre os decisores políticos e os grupos privados voltou a jogar-se no espaço público – tendo chegado à intervenção do Presidente da República – e a dissonância entre a avaliação do governo e dos atores no terreno – administradores e profissionais de saúde – é gritante. Não me interessa se são lutas de galos e quem são os galos da capoeira. Interessa-me que do outro lado estão os portugueses incrédulos, desconfiados e perdidos. Interessa-me também que não se aceite este modo de gerir politicamente a pandemia. Ponham os olhos em Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia. Pouco importam as diferenças que nos separam os dois países. A lição é mais simples: há outra forma de fazer política em tempo de crise. E isso é uma lufada de ar fresco.
Quanto à questão que me interessa, a crítica subiu de tom com o anúncio das medidas que enquadram o atual estado de emergência. A medida que causou mais ruído – e estrago em vários setores económicos – foi o recolher obrigatório nos concelhos de maior risco epidemiológico. Atores políticos, jornalistas, representantes dos setores de atividade mais afetados e o público em geral vieram a terreiro contestar, apontar contradições e alertar para a ineficácia da medida. Mais sério, talvez, seja perceber uma certa polarização entre o eleitorado do governo e o eleitorado contra o governo.
Tenho uma leitura diferente acerca do recolher obrigatório. A medida em si, os horários escolhidos e a não punição por parte das autoridades em caso de desrespeito – tão bom o humor que tem surgido em torno disto – dão três sinais ao país. O primeiro sinal é que estamos mesmo perto de restrições de mobilidade diária mais impositivas. O segundo é que o governo tenta esgotar a pedagogia antes da punição. O terceiro sinal é os comportamentos que as pessoas devem adotar neste momento. Esses comportamentos são: ficar em casa tanto tempo quanto possível, não receber em casa amigos e familiares que não façam parte do agregado familiar e sair de casa em segurança, ou seja, com proteção das vias respiratórias, mantendo o distanciamento físico e não partilhando objetos sem a desinfeção das mãos.
Podemos olhar para trás e apontar críticas ao governo. Podemos criticar a oscilação da mensagem e os erros de comunicação da DGS. Claro que podemos querer dizer basta a toda esta anormalidade que nos interrompe a vida há oito meses. É certo que temos as nossas preferências ideológicas, políticas, partidárias ou apartidárias.
Mas tudo isso é menor face ao que enfrentamos. E o que enfrentamos é a sustentabilidade do país e o bem-estar coletivo. Não é o tempo do “eu” ou “tu”. É o tempo do “nós”. Empregos perdem-se, mortes evitáveis aumentam, as instituições respondem pior, a ansiedade e angústia tomam lugar e a crispação política ocupa o dia.
Por isso temos de ser claros a definir prioridades. A primeira prioridade – aquilo que temos de fazer agora – é resguardarmo-nos e ajudarmos as pessoas que nos são próximas a fazer o mesmo. Temos de ter consciência que estamos perto do agravamento das medidas que limitam ainda mais as nossas liberdades individuais. Isso acontecerá perante a ocupação das camas de internamento – sobretudo em cuidados intensivos – por doentes com covid, enquanto se agrava mais ainda a resposta às outras doenças crónicas e infeciosas. Ninguém sabe se as medidas atualmente em vigor serão suficientes. Os primeiros sinais surgirão até ao final da próxima semana.
Depois disso será tempo de avaliar no terreno as respostas para a gestão dos contágios. As vulnerabilidades que o país enfrenta a nível demográfico, epidemiológico, social e económico não permitem que lutemos por uma política de “contágio zero”. Procuramos um ponto de equilíbrio, dinâmico e instável, entre a vida normal e a transmissão da infeção. A fórmula é bem conhecida: testar, identificar, rastrear e isolar – o reforço das equipas de saúde pública parece finalmente ter saído do papel com a mobilização das forças armadas. Garantir a maior participação e envolvimento dos atores locais – aspeto que os autarcas têm sentido necessidade – e a produção de dados de vigilância epidemiológica de maior qualidade – os erros nas bases de dados e a sucessiva dança de cadeiras nesta área da DGS devem querer dizer alguma coisa.