O que nos deu Gonçalo Ribeiro Telles?
O legado de Gonçalo Ribeiro Telles não é só paisagístico, é também político. Porque, na transição para a democracia, soube persuadir vários governos para que o território e o ambiente estivessem na agenda.
Aos 98 anos, parte um nome incontornável da arquitectura paisagista em Portugal. É caso para relembrar que recebeu o Prémio Sir Geoffrey Jellicoe, talvez o mais alto reconhecimento em arquitectura paisagista no mundo. Mas importa, antes de mais, perceber o que é que o seu legado trouxe para as nossas vidas, para o nosso dia-a-dia. Gonçalo Ribeiro Telles desenhou espaços que estão entre o sonho e o quotidiano, do parque Amália Rodrigues à envolvente da capela do Restelo, passando pelos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
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Aos 98 anos, parte um nome incontornável da arquitectura paisagista em Portugal. É caso para relembrar que recebeu o Prémio Sir Geoffrey Jellicoe, talvez o mais alto reconhecimento em arquitectura paisagista no mundo. Mas importa, antes de mais, perceber o que é que o seu legado trouxe para as nossas vidas, para o nosso dia-a-dia. Gonçalo Ribeiro Telles desenhou espaços que estão entre o sonho e o quotidiano, do parque Amália Rodrigues à envolvente da capela do Restelo, passando pelos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Para quem vem da movimentada Praça de Espanha, ou do burburinho das Avenidas Novas, um passeio nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian traz uma serenidade impensável lá fora: na doçura da luz filtrada pela vegetação, na frescura das sombras ondulantes, na transparência das águas e na leveza dos percursos de betão, que fazem querer saltar de laje em laje. Se o projecto original segue a descrição da mitológica Ilha dos Amores, que Camões deixou n'Os Lusíadas, um passeio neste jardim é um descanso mais do que merecido.
Mas o seu legado não é só paisagístico, é também político. Porque, na transição para a democracia, soube persuadir vários governos para que o território e o ambiente estivessem na agenda. E vale a pena ouvir os seus argumentos, nas várias entrevistas que deu: muitos problemas permanecem actuais.
Gonçalo Ribeiro Telles mostrou como se pode construir sem destruir paisagem, e é talvez por sua causa que vivemos fora de um leito de cheias ou de uma encosta em perigo de desabar. A ele se deve a criação da Reserva Agrícola e da Reserva Ecológica Nacional. Estes foram dos raros instrumentos de gestão territorial que efectivamente contiveram a construção galopante, em todo o país, quando o Estado tinha poucos meios para a controlar. Foram delimitados os espaços com solo arável, esse recurso escasso em Portugal, ou com interesse ecológico, ou expostos a riscos naturais, tais como cheias e derrocadas, para verdadeiramente impedir a construção de edifícios novos.
Hoje há quem critique a rigidez jurídica destes instrumentos: é doloroso não poder construir em lugares tão agradáveis, encostas com vista, lezírias e margens dos rios. Mas quantas vidas já terão sido salvas? Em 2010, faleceram 47 pessoas na ilha da Madeira, vítimas do temporal que fez subir as ribeiras e arrastou consigo casas e encostas. Quantas mortes teriam sido evitadas se também a Região Autónoma da Madeira tivesse adoptado a Reserva Agrícola e a Reserva Ecológica Nacional?
Ao ordenamento do território somam-se planos e projectos, em várias escalas, que tornaram possível o Corredor Verde de Monsanto e até mesmo a Estrutura Ecológica de Lisboa, que, em vez de um somatório de canteiros e jardins, propõe uma relação visual, e também funcional, entre os elementos que compõem a paisagem.
Gonçalo Ribeiro Telles tinha a consciência dos elementos paisagísticos que dão forma ao Portugal mediterrânico — e que, quando desaparecem, criam um vazio existencial, de falta de identidade, e também um rasto de despovoamento e abandono —, um rastilho para os incêndios. Porque Gonçalo Ribeiro Telles disse, a propósito de mais um ano em que o fogo não deu tréguas, que o fim da vida rural como a conhecíamos, as culturas e os pastos deram lugar a uma floresta pouco adaptada ao clima português, óptimo pasto para chamas.
Essa consciência da paisagem mediterrânica e do mosaico agrícola e silvícola que a compõe pode parecer nostálgica, mas afirmou uma cultura paisagística em Portugal que também fez escola, no curso de Arquitectura Paisagista que Gonçalo Ribeiro Telles ajudou a fundar na Universidade de Évora.
Entre projectos políticos e projectos desenhados, a lista parece interminável para um homem só. Porque agora há um legado, no conjunto de lugares que fez e nas lutas que travou, e que importa preservar. Para cuidar do nosso território não basta desenhar: é preciso, literalmente, estar no espaço público e fazer cidadania, com argumentos sólidos e cristalinos que parecem actuais.
Gonçalo Ribeiro Telles mostra como, além da nossa finitude, há causas que nos servem e nos transcendem. E quanto mais mergulhamos nesta crise ambiental sem precedentes, mais o seu trabalho fica na ordem do dia. Que saibamos continuar a sua luta, para construir sem destruir, para deixar a terra melhor do que a encontrámos.