O manto de vergonha sobre o surto na prisão de Tires
Não a podemos tomar por certa – e podemos até desejar, e desejamos, que não se confirme –, mas também não podemos excluir que haja uma direta responsabilidade do Estado pelos danos à saúde ou até pela eventual morte de reclusas que tem à sua guarda.
A comunicação social tem noticiado, nos últimos dias, a ocorrência e o contínuo agravamento de um avassalador surto de COVID-19 no estabelecimento prisional de Tires. Os factos, tal como relatados na imprensa, são particularmente perturbadores, referindo-se a um surto que afeta pessoas sem voz, mas que não pode passar despercebido, nem sem que sejam apuradas responsabilidades.
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A comunicação social tem noticiado, nos últimos dias, a ocorrência e o contínuo agravamento de um avassalador surto de COVID-19 no estabelecimento prisional de Tires. Os factos, tal como relatados na imprensa, são particularmente perturbadores, referindo-se a um surto que afeta pessoas sem voz, mas que não pode passar despercebido, nem sem que sejam apuradas responsabilidades.
Na verdade, importa recordar, ainda para mais em tempos de compressão de direitos fundamentais, que a organização político-social da República portuguesa assenta, como bem se afirma no artigo 1.º da Constituição, na dignidade da pessoa humana. E a condição de reclusas apenas faz destas mulheres condenadas – ou, nalguns casos, talvez muitos, talvez demasiados, arguidas sujeitas a prisão preventiva –, não as priva da dignidade de ser pessoa que partilham com todos os outros cidadãos.
A sua condição faz presumir que praticaram um crime, ou que há motivos justificativos para o decretamento da prisão preventiva, presunção – sociologicamente entendida – que deriva da necessária (mas não indiscutível, nem inabalável) confiança no adequado funcionamento da justiça. Tal condição não torna essas mulheres indignas, nem cidadãs de um outro patamar, para onde possam ser relegadas sem observância dos necessários deveres de cuidado e diligência por parte de quem tem, também, o dever de as vigiar e de as manter à sua guarda, no estrito cumprimento de decisões emanadas dos tribunais, enquanto órgãos de soberania que administram a justiça em nome do povo, como se lê também no artigo 202.º da Constituição.
A situação parece especialmente grave pelos factos veiculados e, no plano político e social, pelo contraste com o destaque, a preocupação e a empatia que, justificadamente, têm merecido os surtos nos lares de idosos. Importa, aliás, notar que, se já ouvimos declarações públicas no sentido de que os surtos em lares têm uma dimensão relativamente moderada e que a responsabilidade pela adoção de medidas de proteção e controlo da epidemia nos lares não compete, em primeira linha, ao Estado – e independentemente da apreciação que se faça dessas afirmações –, é certo que elas não são transponíveis para casos de surtos numa prisão, instituição sob exclusivos controlo e gestão públicos. Gestão esta encarregue, repita-se, de assegurar o encarceramento e a vigilância das reclusas, mas também o respeito pelos seus direitos fundamentais não afetados pela privação da liberdade, desde logo os direitos à saúde e à preservação da respetiva integridade física e, mais amplamente ainda, condições de reclusão compatíveis com a dignidade da pessoa humana.
Ora, segundo as informações disponíveis, 150 reclusas já testaram positivo, todas do pavilhão de reclusas a cumprir pena de prisão, tendo sido agendada a testagem das reclusas do pavilhão destinado ao cumprimento da prisão preventiva, que alegadamente iria ocorrer no passado dia 7. Também se refere que boa parte das reclusas partilham camaratas de 4 ou 5 pessoas, o que tornou e tornará o contágio quase inevitável.
Tudo isto é, por si só, lamentável, mas a gravidade das coisas surge bem mais nítida quando se tem em conta que, segundo a informação publicamente veiculada, o surto teve origem numa reclusa que fazia deslocações regulares ao exterior para receber cuidados médicos e regressava sem que fosse colocada de quarentena, por um lado, e que as guardas prisionais não terão sido imediatamente testadas e terão mesmo participado numa “busca geral”, depois de se saber que havia casos de infeção e sem que tivessem sido informadas da situação, por outro lado (agravando, assim, o risco de contágio de guardas e de reclusas). Por fim, também circula a informação de que várias reclusas já com sintomas não foram isoladas nem testadas atempadamente.
Não sabemos se os factos descritos correspondem à verdade ou traduzem toda a verdade. Mas parecem indícios mais do que suficientes para se exigir uma completa e exaustiva indagação sobre a existência de quaisquer responsabilidades. E isto sem deixar de levar em conta que a responsabilidade civil do Estado por atos de gestão pública não carece, sequer, de uma responsabilidade individualizada em determinadas pessoas singulares, bastando-se com o funcionamento de um serviço público, globalmente considerado, abaixo do padrão ou da fasquia juridicamente exigível (em face das circunstâncias concretas, mas também em face do grau de diligência que se impõe a um Estado de direito na salvaguarda de direitos fundamentais).
Não a podemos tomar por certa – e podemos até desejar, e desejamos, que não se confirme –, mas também não podemos excluir que haja uma direta responsabilidade do Estado pelos danos à saúde ou até pela eventual morte de reclusas que tem à sua guarda. Haja ou não haja responsabilidade, os indícios não podem ser escamoteados ou relativizados. É preciso destapar o manto de vergonha sobre o surto na prisão de Tires.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Rui Cardona Ferreira – Advogado e Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa