A propósito da utilização de testes rápidos para a pesquisa de antigénio
O valor clínico de qualquer teste laboratorial decorre, para além das exigências inerentes às boas práticas laboratoriais, da sua correta utilização num contexto num contexto patológico específico. Se tal não acontecer, os resultados obtidos podem-se revelar enganadores e, por vezes, contraproducentes
Perante a proximidade da anunciada regulamentação e utilização dos designados “testes rápidos” impõe-se realizar uma reflexão sobre o seu enquadramento no diagnóstico da COVID-19 e do combate à atual pandemia, a bem da salvaguarda da saúde pública.
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Perante a proximidade da anunciada regulamentação e utilização dos designados “testes rápidos” impõe-se realizar uma reflexão sobre o seu enquadramento no diagnóstico da COVID-19 e do combate à atual pandemia, a bem da salvaguarda da saúde pública.
No momento atual, em que o número de casos diários volta a aumentar, é primordial que a capacidade de controlar a epidemia através de um efetivo rastreio de contactos, da aplicação de testes de diagnóstico laboratorial em larga escala, da deteção ativa e precoce de casos, e do isolamento rigoroso dos casos e seus contactos, sejam elementos chave para limitar a propagação da COVID-19.
Para atingirmos este desiderato, reconhece-se a mais-valia de testes laboratoriais que apresentem uma resposta mais rápida e um menor custo, quando comparados com o método clássico de biologia molecular (PCR) até agora os únicos recomendados pelas instituições de saúde Nacionais. No entanto, os testes rápidos de antigénio atualmente disponíveis apresentam sensibilidades e especificidades muito variáveis, revelando a sua pior performance no diagnóstico das fases iniciais de infeção pelo vírus, e - a maioria - muito longe das sensibilidade e especificidade exigidas pela Circular Informativa Conjunta DGS/INFARMED/INSA e pela Norma 019/2020 (vide, por exemplo, os resultados reportados pela FIND - Foundation for Innovative New Diagnostics - a que o ECDC tem recorrido para a avaliação da qualidade dos testes laboratoriais utilizados no diagnóstico da COVID-19).
Do exposto, decorre a recomendação de limitar a sua utilização nos primeiros cinco dias (inclusive) de doença sintomática, de modo a diminuir a probabilidade de obtenção de resultados falso-negativos (será nesta fase onde é esperada uma maior carga viral que irá compensar a falta de sensibilidade destes testes). Assim, o rastreio de contactos e grupos de indivíduos eventualmente expostos e sem sintomas não poderá ser considerado (operários de uma unidade fabril onde foram reportados casos, por exemplo), uma vez que a fraca sensibilidade demonstrada por estes testes implicaria a possibilidade de uma apreciável percentagem de falsos-negativos na população de portadores assintomáticos do vírus. Afigura-se uma situação crítica a utilização massiva de testes que, perante as evidências científicas, poderão gerar resultados erróneos e, com isso, uma falsa sensação de controlo por parte de indivíduos testados, que poderão afrouxar o seu comportamento preventivo pela consciência de que estão negativos, quando, na verdade, poderão estar positivos e originadores de focos de contágio.
Também interessa enquadrar as condições da sua utilização:
A colheita das amostras (esfregaços da rinofaringe / orofaringe) é um ato igual ao atualmente realizado para a recolha de amostras para a pesquisa por métodos de biologia molecular, obrigando a iguais medidas de licenciamento das instalações (registo na ERS) e dos cuidados técnicos e de segurança requeridos para este procedimento, quer para os utentes quer para os técnicos habilitados para essas colheitas.
A realização dos testes em si requer que os mesmos sejam executados por profissionais habilitados e sob controlo de um laboratório licenciado e controlado (que cumpra todos os preceitos exigidos pela Regulamentação da Lei de Licenciamento de Laboratórios e pelo Manual de Boas Práticas Laboratoriais).
A comunicação dos resultados quer aos indivíduos, quer às entidades competentes – DGS, através do SINAVE – deverá ir de encontro com o estipulado pelas leis vigentes, ou seja, deverá saber-se quem é o responsável legalmente habilitado por cada resultado comunicado.
Por fim, interessa ainda que as entidades competentes definam procedimentos claros nos casos de resultados positivos e de resultados negativos e em que casos será necessária a sua confirmação por métodos de Biologia Molecular e quem decide essa necessidade. Porque estes testes não têm o mesmo valor diagnóstico dos testes de biologia molecular em que todos os resultados são atualmente comunicados ao SINAVelab, interessa definir que resultados obtidos pelos testes rápidos devem ser comunicados, ou não (positivos, negativos ou só confirmados por PCR?), sabendo que a decisão tomada irá certamente influenciar os números expressos da pandemia e nos quais são baseadas decisões políticas e científicas importantes.
Do acima exposto, e antes do início da sua utilização, interessa que as seguintes questões fiquem claramente respondidas:
Em que situações concretas se recomenda a sua utilização e não a de testes PCR?
Qual o comportamento a ter perante um resultado positivo e perante um resultado negativo? Irá ser criado pela DGS algoritmo (procedimentos) de seguimento para resultados positivos e negativos (confirmação por TAAN)? Quem os deverá aplicar (médicos de saúde pública / médicos de medicina geral e familiar ou entidades laboratoriais responsáveis pela realização dos testes?
Estes testes irão requerer prescrição médica?
Sendo um teste de diagnóstico e/ou de orientação de decisões em saúde pública e de vigilância da COVID-19, vai ser elaborada a listagem das entidades que os podem realizar, à semelhança do que acontece para os testes de diagnóstico por PCR?
Quem atesta as características laboratoriais exigidas pela presente Norma dos testes comercializados (INFARMED / INSA)? Os que não cumprem os critérios poderão ser comercializados?
Uma vez que “Os testes devem ser realizados por um profissional de saúde com experiência e competência para a colheita da amostra, realização do teste e interpretação dos resultados” (Circular Informativa Conjunta DGS / INFARMED / INSA n.º 004/CD/100.20.200), a sua venda e aquisição será permitida a qualquer pessoa, entidade ou empresa (nomeadamente as de Medicina do Trabalho)?
Uma vez que a Norma estabelece que “a monitorização do desempenho dos testes deverá ser acompanhada ao longo do processo de utilização através da análise de controlos internos e externos, pelo INSA” haverá por parte desta instituição forma de certificar a qualidade da prestação de quem irá utilizar estes testes?
O valor clínico de qualquer teste laboratorial decorre, para além das exigências inerentes às boas práticas laboratoriais, da sua correta utilização num contexto num contexto patológico específico. Se tal não acontecer, os resultados obtidos podem-se revelar enganadores e, por vezes, contraproducentes no correto diagnóstico de uma patologia, com nefastas consequências para o indivíduo e para a sociedade. O que é ainda mais evidente na situação de Pandemia COVID-19 que atravessamos.