O Governo “ficou deslumbrado” e preparou-se mal para a segunda vaga da covid-19
Portugal perdeu a capacidade de rastrear os casos de infecção pelo novo coronavírus e pareceu ter ficado desatento às recomendações técnicas, dizem médicos e cientistas.
Se na Primavera nos confinámos, no Verão fomos mandados de “forma eufórica” para a praia, como diz José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, com sede no Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra. E, em Agosto, Tiago Correia começou a ficar preocupado com a atitude do Governo. “Não consigo explicar a mudança de posicionamento do Governo”, diz o professor associado de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.
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Se na Primavera nos confinámos, no Verão fomos mandados de “forma eufórica” para a praia, como diz José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, com sede no Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra. E, em Agosto, Tiago Correia começou a ficar preocupado com a atitude do Governo. “Não consigo explicar a mudança de posicionamento do Governo”, diz o professor associado de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.
“Acho que houve claramente um certo deslumbramento, pensar que nos saímos muito bem na primeira vaga e que também nos sairíamos bem na segunda. Houve uma desconsideração política pela evidência técnica, uma falta de utilização do conhecimento técnico na elaboração das políticas que não consigo explicar”, diz o especialista em Saúde Internacional.
“No Verão, de preparação para o Outono e Inverno, só consigo lembrar-me de que procurámos antecipar as vacinas da gripe e tratar do processo logístico da sua compra, e reforçar a nossa capacidade de testes de despiste da covid-19”, diz o investigador – que no entanto faz questão de dizer que tem “uma enorme consideração e respeito pelos decisores que há oito meses têm de lidar todos os dias com isto”.
A partir de Agosto, e sobretudo do início de Setembro, o Governo de António Costa pareceu ficar cheio de certezas. “Começámos a ver um Governo muito mais autocentrado, menos sensível aos sinais da população. Vimos os nossos decisores políticos em espectáculos, a repetir-se da mensagem de que não voltaríamos a confinar, de que fomos bons alunos, de que tudo já tinha passado. Percebemos que as pessoas desconsideraram em absoluto a situação pandémica”, recorda.
Apesar dos alertas técnicos de que vinha aí uma segunda vaga, e de vários especialistas a alertar que Portugal devia adoptar os mapas epidemiológicos por cores – os “semáforos”, que assinalam a gradação de risco no território, e já foram usados de várias formas na Europa – o Governo persistiu numa atitude mais zen. “Houve um relaxe completo. Das pessoas, dos decisores políticos”, diz Tiago Correia.
“Em Portugal, entretanto, perdeu-se a capacidade de fazer – de identificar as cadeias de transmissão do vírus”, frisa Tiago Correia. Essa dificuldade já tinha sido identificada nos surtos em Lisboa de Junho e Julho. Agora está a tentar-se recuperar esta arma fundamental na contenção da pandemia, recrutando a ajuda do Exército. “Isto é muito importante, mas em Novembro? A imagem que tenho na cabeça é um comboio a alta velocidade que tem de ser travado - mas demora muito mais parar de repente do que quando o comboio estava com um andamento mais baixo”, frisa o investigador.
A dinâmica estava imparável, e não só em Portugal, também em toda a Europa, nota o pneumologista Jaime Pina, que participou no grupo de especialistas que, em 2003, elaborou o plano de contingência para a a SARS – a síndrome respiratória aguda grave, causada por um coronavírus bastante semelhante ao actual SARS-Cov-2, mais letal mas menos infeccioso, que rapidamente deu a volta ao mundo mas se extinguiu em sete meses.
“No fim, reuniram-se os peritos todos, para tirar conclusões, mas ao fim de 17 anos elas ficaram esquecidas. A primeira era que é importantíssima a coordenação da Organização Mundial de Saúde em todas as fases da pandemia. A segunda é que os sistemas de vigilância e a informação têm de estar ao serviço de toda a gente. E a terceira é que a cooperação era fundamental”, diz.
“Ora na Europa, com a covid-19, cada um fez à sua maneira. A UE não falou a uma só voz. Houve coisas tão dispersas como confinamentos em Portugal ou não-confinamentos na Suécia, estratégias muitíssimo diferentes”, conclui.