A bola passa pelo centro, mas o Chega não a quer jogar
O que alimenta o Chega é o descontentamento e a divisão. Não tem qualquer interesse em contribuir para a solução. Por agora, mantenham a cerca sanitária
Enquanto estávamos transfixados em frente à televisão para saber se Mr. Biden conseguia ir para Washington, nem que fosse por três votos em Maricopa County, no outro canal estava a dar a última telenovela portuguesa, desta vez nos Açores, cujo enredo se centra no novo romance entre o PSD de Rui Rio e o Chega de André Ventura. Como é costume neste tipo de enredo, os primeiros capítulos decorreram ao som do “I say no, no, no”. No entretanto, o noivo começou a afiançar no Twitter que a noiva não é assim tão feia e que, mesmo feia, tem todo o direito a casar com ela, dado o PS já ter casado com muito pior.
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Enquanto estávamos transfixados em frente à televisão para saber se Mr. Biden conseguia ir para Washington, nem que fosse por três votos em Maricopa County, no outro canal estava a dar a última telenovela portuguesa, desta vez nos Açores, cujo enredo se centra no novo romance entre o PSD de Rui Rio e o Chega de André Ventura. Como é costume neste tipo de enredo, os primeiros capítulos decorreram ao som do “I say no, no, no”. No entretanto, o noivo começou a afiançar no Twitter que a noiva não é assim tão feia e que, mesmo feia, tem todo o direito a casar com ela, dado o PS já ter casado com muito pior.
Não há dúvidas que o PSD tem toda a legitimidade para escolher casar com o Chega. Decorreram eleições, não há uma maioria clara, portanto cabe fazer coligações ou acordos para governar. É assim que funciona uma democracia de base parlamentar. Já aconteceu. Inclusive ao próprio PS. E, depois do choque inicial, descobrimos que os comunistas já não comem criancinhas ao pequeno-almoço.
Sempre que digo colocar-me essencialmente do centro, é frequente dizerem-me tratar-se de um lugar aborrecido. Nada de verdadeiramente novo se passa no centro, as revoluções acontecem sempre nas alas. Tendo a concordar. Não raro, as ideias que trazem grandes mudanças nascem nos radicais. Mas, em democracia, aquilo que as transforma em políticas reais implica serem carreadas até ao centro. É preciso lá ir se queremos reformas efetivas.
Veja-se o que aconteceu nos últimos tempos em matéria de igualdade do género e direitos LGBT. O seu espaço originário mais vocal está sobretudo numa franja à esquerda. Mas foi sua absorção pelo centro que resultou em medidas concretas. Olhando para o outro lado, pode dizer-se o mesmo em relação à necessidade de flexibilizar as relações de trabalho. Correspondendo primariamente a uma reivindicação de quem quer liberalizar tudo e mais alguma coisa na economia, a ideia foi sendo filtrada até ao centro onde acabou por conseguir alterações no regime legal. O centro político não é um espaço estático, onde estão sentados um conjunto de frouxos que não sabem lá muito bem o que querem. Ao contrário, é o lugar onde todos vão quando querem mesmo mudar a vida das pessoas.
Mesmo assim, quando o PS se coligou com o PC e o BE em 2015, eu própria, centrista convicta e que crente nesta capacidade de absorção e filtragem do centro, posso ter tido alguma ansiedade em relação ao futuro. Não tanto em relação ao PC, mais do que habituado, nem que seja pela prática sindical, a sentar-se à mesa das negociações. A minha dúvida era se o Bloco de Esquerda, nascido como um partido de protesto, estava disposto a fazer o mesmo. Até agora, parece que sim.
Deveria assim concluir não existir razão nenhuma para recusar ao Chega a mesma legitimidade para se coligar e conseguir assim, via o PSD, trazer para o centro preocupações legítimas do seu eleitorado. Num texto em que analisa “O que pensam os que votaram Chega”, Pedro Magalhães, investigador no Instituto das Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, baseado nos dados de um Estudo Eleitoral feito em 2019 e coordenado por Marina Costa Lobo, refere que a ideia de que a “elite política” é “corrupta” preocupa mais os eleitores do Chega do que a maioria do eleitorado português. Mas não é preciso ser de extrema-direita para ver na corrupção um elemento corrosivo da democracia portuguesa que requer a tomada de medidas.
O problema é que o Chega não se limita a ser um partido de protesto. O Chega tem-se apresentado até agora como um verdadeiro partido populista anti-sistema. Lendo o seu programa eleitoral, o seu objetivo é mesmo a explosão do sistema. E toda a atuação do Chega, das declarações provocatórias boçais aos números de sapateado habituais de André Ventura, nas escadas do parlamento ou lá dentro, não revela qualquer intenção de levar ao centro as eventuais preocupações legítimas do seu eleitorado. O que o Chega pretende coligar-se com os restantes partidos de direita é conseguir pôr um pé na porta para que o seu discurso seja normalizado. Algo que já foi feito pela Frente Nacional em França há muito tempo. Não parece ter corrido lá muito bem.
Há várias inquietações do eleitorado do Chega que merecem ser objeto de discussão no centro. Mas, neste jogo de alianças, é muito pouco provável que a noiva queira mesmo constituir família. O que alimenta o Chega é o descontentamento e a divisão. Não tem qualquer interesse em contribuir para a solução. Por agora, mantenham a cerca sanitária. Querem esvaziar o Chega? Deem-se ao trabalho de ir lá sozinhos buscar o que tanto desassossega os seus votantes. Não sejam preguiçosos e apanhem uma boleia que pode acabar mal.