Recordar Cohen, o frémito espiritual que não esvanece
Homem das letras, Leonard Cohen deu-se ao mundo vestido de poeta, deixando latentes os seus traumas e delírios, dominando-os pela ponta da esferográfica — e onde reside o valor de um homem senão na capacidade de assumir os seus traumas e delírios, ao mesmo tempo que os domina?
Há quatro anos, o mundo declarava tréguas a Leonard Cohen, cumprindo-lhe o tartamudeado “I’m ready, my Lord”. Filho da geração que reconciliou a literatura com a música, junto com vultos como Dylan ou Mitchell, Cohen representou a voz negra e melancólica do existencialismo moderno.
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Há quatro anos, o mundo declarava tréguas a Leonard Cohen, cumprindo-lhe o tartamudeado “I’m ready, my Lord”. Filho da geração que reconciliou a literatura com a música, junto com vultos como Dylan ou Mitchell, Cohen representou a voz negra e melancólica do existencialismo moderno.
Homem das letras, deu-se ao mundo vestido de poeta, deixando latentes os seus traumas e delírios, dominando-os pela ponta da esferográfica — e onde reside o valor de um homem senão na capacidade de assumir os seus traumas e delírios, ao mesmo tempo que os domina?
Cohen escreve sobre o comum, o vulgar e o interdito — do desprezo ao amor, do sagrado ao carnal, das traições que lhe impuseram ao afecto que o consolou. Há um toque ecléctico na sua obra, mas o verdadeiramente pungente é a desenvoltura, essa sibilina arte de ser livre. Não pelo cariz político ou dramático, mas pela resistência às narrativas tão somente cerebrais, banais ou piedosas. Inserido numa atmosfera cultural pudica e canhestra, obcecada pela coerência entorpecida ou artificial, é particularmente comovente a coragem de cantar as suas contradições, os seus desejos e pecados, como um pássaro no arame.
Chelsea Hotel, I Tried To Leave You ou Famous Blue Raincoat. A obra é tudo menos curta ou preguiçosa e o primeiro álbum continua a ser o melhor representante de uma tragável solidez poética.
As primeiras audições podem ser um tanto estranhas. Se o grassar de sons dos tempos modernos, truanescos e vendidos pela imagem, nos fazem abusar da reprodução até serem reciclados numa outra tonalidade ou num outro lugar comum de palavras rudimentares, a música de Cohen convida-nos a ficar e a abandonar o parasitismo das audições recauchutadas até à exaustão sob a veste de botões diferentes.
Em Songs Of Leonard Cohen dá-se o início dessa viagem, numa linguagem assente no sagrado, que o viria a acompanhar até ao dia em que provocou o Todo Poderoso com o sarcástico You Want It Darker.
Do suicídio ao ciúme, a severidade poética mostra um homem detalhista, inseguro, sovado por medos e fraquezas, numa procura desesperada por si próprio, entre a solidão criativa e o desejo de conjurar a agonia. E toda esta catarse confessional é acompanhada por um estilo verdadeiramente novo que lhe ficará para sempre colado à pele — a voz cálida, grave, sombria, forrada com o folk dos arpejos abertos, crus e escorridos enceta a busca pela serenidade na inquietude, na dúvida e na escuridão.
Atormentado e mergulhado no cinismo, Cohen compeliu as dúvidas contra a indecência dos dogmáticos e da reunião dos ternos
“Oh, yes, I loved you in the morning
our kisses deep and warm
your hair upon the pillow
like a sleppy golden storm”
com os confessionais “I lit a thin green candle to make you jealous of me”, nasceu a eterna e amarga fórmula “coheniana” com “we met when we were almost young”, cantada num adágio gotejado de candura, reveladora de um homem pacificado com a perda e com a dor.
Cohen era um homem conhecedor, frequentador de meandros e salões, compositor de valsas e bailados. Mas num mundo governado pela tirânica obrigação de “ser feliz”, nunca usou a tinta ou a voz para dissertar sobre certezas. Cantou as dúvidas, os limbos e as contingências. Não como um pós-moderno mesquinho, funcional ou auto-perdoado, mas como alguém ciente da falibilidade convalescente nas entranhas humanas.
“Hey, that’s no way to say goodbye”, balbuciou Cohen numa anáfora delgada e desesperada. E no final de contas talvez não haja nenhuma forma de o dizer sem ficar ferido. E talvez a saudade continue a forçar-nos a sobreviver ao pecado da solidão, a mastigar pedras de injustiças e traições e a embriagar-nos de palavras e melodias numa tentativa de subterfúgio à derrota. Se essa é a nossa sina, será mais fácil viver enquanto os nossos ouvidos tiverem espaço para as irmãs da misericórdia; para os traumas cantados de um homem que um dia foi abandonado por nunca ter dito que era corajoso, mas que por caminhos sem despeito serenou e entregou ao mundo uma alternativa aos fígados maltratados e aos abusos da literatura desleixada.
Ao contrário deste texto, que deixa muito por dizer, a profundidade da obra “coheniana” leva tempo a decifrar e exige mais do que a leitura de biografias resumidas ou audições desinteressadas. E com uma obra tão difusa, há sempre um poema por ler e um acorde por cotejar, mas devo confessar que volto frequentemente ao seu poema de uma estrofe só.
Porque, à semelhança de todos os homens que recusam virar as costas à verdade e à escuridão, também Cohen cogitou a ideia de que não há nenhuma razão para que nos lembremos dele. Mas há.