Moinhos de Lisboa esperam por quem faça farinha com eles
Junta de Belém está a reabilitar os moinhos de Santana e PCP propõe que voltem a funcionar e integrem uma rede que valorize um património esquecido e degradado da cidade.
Há 200 anos, quem entrasse em Lisboa pela zona saloia veria um sem-fim de moinhos nas colinas, aproveitando o vento dos altos para transformar o grão na farinha com que se fazia o pão.
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Há 200 anos, quem entrasse em Lisboa pela zona saloia veria um sem-fim de moinhos nas colinas, aproveitando o vento dos altos para transformar o grão na farinha com que se fazia o pão.
Havia então “uma pressão enorme sobre o mercado abastecedor” e “em 50 anos constroem-se 500 moinhos” na cidade e nos seus arredores, explica Jorge Miranda. O antropólogo, que é um dos responsáveis pela Rede Portuguesa de Moinhos, diz que os moinhos de vento a Norte do Tejo “produziam farinha para a população civil”, enquanto os moinhos de maré, a Sul, “produziam para o esforço militar do império”, que na época incluía ainda o Brasil.
Jorge Miranda faz notar que Monsanto não era ainda a densa floresta que o Estado Novo mandou plantar e que, por ser uma grande elevação na cidade, ali se concentravam muitos dos moinhos de Lisboa. “Começavam no Caramão da Ajuda e acabavam em São Domingos de Benfica.”
Alguns destes ainda subsistem. A Junta de Freguesia de Belém iniciou esta semana trabalhos de reabilitação nos moinhos de Santana, que ficam num parque urbano entre o alto do Restelo e a Ajuda. “Começaram as obras na quarta-feira”, confirma o presidente da junta, Fernando Ribeiro Rosa. “Dá-me muito gozo ver aqueles moinhos recuperados”, diz o autarca do PSD, adiantando que prevê a conclusão dos trabalhos até ao fim do ano ou meados de Janeiro.
Ribeiro Rosa levanta a hipótese de ali poder ser criada uma zona de lazer ou uma esplanada para usufruir das boas vistas que se obtêm do local, mas garante que a sua preocupação imediata “é recuperar os dois moinhos”, que estão muito degradados e são presa fácil de maus usos e vandalização. “Vamos pô-los em condições, nada de luxos.”
Voltar a fazer farinha
Também na quarta-feira, dois vereadores do PCP estiveram nos moinhos de Santana para apresentar uma proposta de requalificação dos moinhos de Lisboa, pelo menos os que estão classificados no Plano Director Municipal (PDM). “Não é apenas uma proposta que visa a construção civil, a obra pública, o que se pretende é mobilizar este património numa perspectiva de desenvolvimento local”, explica Josué Caldeira, um dos eleitos comunistas.
O documento, que há-de ser submetido brevemente a reunião da Câmara de Lisboa, prevê não só a reabilitação física de pelo menos 11 moinhos, como a criação de uma rede com um programa de dinamização próprio e um pólo museológico onde se explique a relevância dos moinhos para a cidade.
“Eu lembro-me que há uns 15 ou 20 anos as crianças de Belém podiam visitar estes moinhos, falar com o moleiro e levar farinha para casa”, descreve Josué Caldeira. Um dos pontos da proposta do PCP prevê, para os moinhos de Santana, a sua “recuperação integral (…) respeitando as especificidades técnicas e funcionais de cada um, para que estes voltem a funcionar na sua plenitude, recuperando as condições de produção de farinha em rama.”
É ali, no entender dos vereadores, que deve ficar instalado o pólo museológico e um centro interpretativo. “Os moinhos são elementos que podem dar um contributo significativo para uma agenda de valorização da cidade”, diz Caldeira, exemplificando que através deles se podem transmitir conhecimentos sobre energia, alimentação saudável ou sustentabilidade ambiental. Os moinhos “falam muito da cidade e da economia da cidade num período pré-industrial, são formas ancestrais de relação do homem com os recursos”, afirma, convicto de que há uma oportunidade de “transformar este conjunto de edifícios dispersos” numa rede com “importância de futuro”.
Jorge Miranda ainda se lembra de ver moinhos de Lisboa a trabalhar e destaca a importância dos existentes no Caramão da Ajuda – que “foram feitos pelo último mestre digno de referência da região Oeste” – e de um, sobranceiro ao Viaduto Duarte Pacheco, na bem nomeada Rua dos Sete Moinhos. Trata-se de um exemplar como muitos outros, mas com a particularidade de ter merecido a atenção de Simon Goodrich, engenheiro inglês radicado em Lisboa que foi “uma das referências da segunda fase da Revolução Industrial”, diz Miranda, e que fez um registo pormenorizado do moinho, que hoje se encontra nos arquivos do Museu de Ciência, em Londres.
Concluídos os trabalhos nos moinhos de Santana, Fernando Ribeiro Rosa ainda tem esperança de poder intervir em mais um dos cinco moinhos da freguesia, este junto aos campos de râguebi do Belenenses.