Morreu o realizador Fernando Solanas, para quem o cinema era sempre político
Autor ligado ao Terceiro Cinema, militante de esquerda e exilado, Fernando “Pino” Solanas foi também deputado e senador argentino. Filmar era, para ele, um acto de resistência, de cidadania. Tinha 84 anos.
Incomodavam-no os poderes instalados, acríticos, tanto no cinema como na política. Eternamente inquieto, referência da sétima arte e da esquerda argentinas, Fernando Solanas, realizador com uma longa carreira no documentário, mas também antigo deputado e senador, morreu sexta-feira aos 84 anos. Fora hospitalizado há quase três semanas em Paris, cidade onde representava o seu país como embaixador junto da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), e tinha-lhe sido diagnosticada covid-19, noticia o diário espanhol El País.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Incomodavam-no os poderes instalados, acríticos, tanto no cinema como na política. Eternamente inquieto, referência da sétima arte e da esquerda argentinas, Fernando Solanas, realizador com uma longa carreira no documentário, mas também antigo deputado e senador, morreu sexta-feira aos 84 anos. Fora hospitalizado há quase três semanas em Paris, cidade onde representava o seu país como embaixador junto da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), e tinha-lhe sido diagnosticada covid-19, noticia o diário espanhol El País.
Fernando “Pino” Solanas, assim era conhecido, é autor de uma obra extensa em que se tornam evidentes a sua ideologia e o seu compromisso políticos. Não é por acaso que La Hora de los Hornos (1968), a sua primeira obra longa, uma trilogia feita na clandestinidade durante o regime de Juan Carlos Onganía e quando o cineasta pouco passava dos 30 anos, é hoje matéria de estudo, visto como um dos grandes documentários políticos do século XX, testemunho essencial do neocolonialismo e da violência na América Latina.
“Dor enorme por Pino Solanas”, pode ler-se num post colocado sexta-feira na conta do Ministério dos Negócios Estrangeiros argentino na rede social Twitter. “Será recordado pela sua arte, pelo seu comprometimento político e pela sua ética posta sempre ao serviço de um país melhor.”
Nascido em 1936 num subúrbio de Buenos Aires, Solanas começou por estudar Direito, alimentando o seu lado artístico primeiro na música e no teatro, e só depois no cinema, onde viria a chamar a atenção da crítica internacional desde o início, com prémios e menções honrosas de festivais em Espanha e França.
Lembra o site de notícias The Canadian News que foi no terreno, trabalhando em publicidade e realizando cerca de 800 anúncios para televisão, que Solana fez grande parte da sua formação com a câmara.
La Hora de los Hornos (1968), a trilogia-documentário que começa a rodar depois do golpe militar de 1966, continua a ser incontornável num currículo em que merecem também destaque as suas duas obras de ficção mais premiadas: Tangos… El exilio de Gardel (1985) e Sur (1988), valendo-lhe esta última a palma para o melhor realizador no Festival de Cannes.
A grande trilogia
Co-dirigido por Octavio Getino, companheiro de várias lutas artísticas, políticas, cívicas, La Hora de los Hornos é um documentário de 260 minutos dividido em três partes – Neocolonialismo e Violência, Acto pela Libertação e Violência e Libertação, assim se podem traduzir – em que os autores, recorrendo a vários registos e técnicas, incorporando documentos de época e imagens reais (documentos escritos, fotografia e filme), fazem uma crónica do peronismo e da resistência trabalhista na Argentina, o que explica ter visto a sua exibição banida no país e noutros mergulhados em ditaduras, e o facto de ser usada como referência da resistência cultural da década de 1960.
Foi também com Octavio Getino e logo no ano seguinte, em 1969, que Fernando Solanas fundou o Grupo Cine Libéración (também com Gerardo Vallejo), um colectivo militante que queria dar força a um circuito alternativo de exibição, ancorado em entidades que organizavam a resistência à ditadura, sendo responsável por dois manifestos fílmicos: La Revolución Justicialista e Actualización Doctrinaria para la Toma del Poder.
Escreve o The Canadian News que à dupla Solanas/Getino se deve, ainda, o movimento-manifesto que ficaria conhecido como Terceiro Cinema, denunciador do neocolonialismo e do capitalismo, alternativa à hegemonia de Hollywood (nos Estados Unidos) e do chamado “cinema de autor” (na Europa), promotor de filmes nascidos da criação (e da volntade) de um colectivo, cuja exibição devia ser arredada do circuito comercial e circunscrita à clandestinidade.
Por fim a política
Fernando Solanas cumpriria grande parte da década de 1970 no exílio, tendo sofrido uma tentativa de sequestro em 1975. Foi a partir de França que filmou o documentário La Mirada de los Otros e se associou às denúncias dos crimes da ditadura e aos esforços de grupos como o Mães da Praça de Maio.
Escreve o diário El País que, em 1991, um processo judicial – teve de responder por injúrias a propósito das suas críticas àquela que definia como política neoliberal do então Presidente argentino Carlos Menem – mudou-lhe a vida. Baleado numa perna depois de ir a tribunal, enveredou por uma carreira política que fez dele três vezes deputado, uma senador e uma candidato à presidência.
As suas críticas ao casal Néstor e Cristina Kirchner, ambos Presidentes da Argentina, e o seu activismo em defesa do meio ambiente marcaram os últimos documentários que assinou: Tierra sublevada: oro impuro (2009), sobre a mineração; Tierra sublevada: oro negro (2011), centrado no petróleo; ou Viaje a los pueblos fumigados (2018), pondo em foco o uso e abuso dos agroquímicos.
“No meu país, na América Latina, no mundo inteiro, o meu cinema quer contribuir para o debate, urgente e indispensável, sobre a desumanidade da globalização. E, ao mesmo tempo, deseja provar que há outro mundo possível”, disse o realizador que, tanto no documentário como na ficção, nunca deixou de querer unir política e cinema.