Encenavam acidentes e burlavam seguradoras. Ministério Público pediu prisão efectiva apenas para três dos mais de 70 acusados
Seguradoras terão sido burladas em cerca de 1,5 milhões de euros. Julgamento está a chegar ao fim e Ministério Público pediu penas de prisão suspensas para a maioria dos arguidos. Em causa estão crimes de burla qualificada e tentada e de falsificação de documentos.
O julgamento da rede de 73 indivíduos, acusados de burlar seguradoras em cerca de 1,5 milhões de euros, através da encenação de acidentes de automóvel, chegou ao fim com o Ministério Público (MP) a pedir prisão efectiva apenas para três dos arguidos (dois empresários e um mecânico) e pena suspensa para os restantes. Em causa estão crimes de burla qualificada e tentada e de falsificação de documentos.
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O julgamento da rede de 73 indivíduos, acusados de burlar seguradoras em cerca de 1,5 milhões de euros, através da encenação de acidentes de automóvel, chegou ao fim com o Ministério Público (MP) a pedir prisão efectiva apenas para três dos arguidos (dois empresários e um mecânico) e pena suspensa para os restantes. Em causa estão crimes de burla qualificada e tentada e de falsificação de documentos.
Segundo a acusação do Ministério Público (MP), entre 2006 e 2010 este grupo manteve um esquema de falsos acidentes com o objectivo de obter as indemnizações das seguradoras. Os acidentes ocorriam sempre entre as 19h e a 1h e em estradas na zona do Ribatejo, nomeadamente em Benavente e Salvaterra de Magos, sem feridos, nem testemunhas, e sempre próximo das oficinas dos arguidos e das residências dos vários intervenientes.
Nas alegações finais, a procuradora do MP entendeu que se encontram verificados os ilícitos na maioria dos acidentes (foram analisados 70 desastres e 108 viaturas) e que por isso os arguidos devem ser todos condenados pelos crimes imputados na acusação: burla qualificada na forma consumada e tentada e crimes de falsificação.
Defendeu que se está perante “comportamentos muito graves” e que “há razões de prevenção geral e especial para os arguidos serem punidos”. Referiu ainda, no que diz respeito ao facto de ter pedido a condenação da maior parte dos arguidos a penas de prisão suspensas na sua execução, que “aceitar participar em acidentes, mesmo por questões económicas, não pode funcionar como atenuante”.
A procuradora sublinhou o facto de a prova ser essencialmente documental, uma vez que a rede foi detectada muito depois de os factos terem ocorrido. “Não há escutas ou levantamento do sigilo bancário”, referiu, sublinhando que a maioria das testemunhas “não se recordava dos factos” ou optaram “por não prestar depoimento” por serem familiares dos arguidos.
Airbags e quilometragem forjada
“A prova é indirecta, mas com muitas perícias. E há três pontos em que incidem estas perícias”, sublinhou a procuradora. Revelam, por exemplo, que nas viaturas alegadamente envolvidas nos acidentes, os airbags não foram accionados, mas foram cobrados às companhias de seguros. “Os airbags são o componente mais caro de uma reparação e foram cobrados na íntegra”, referiu.
Além disso, as perícias também revelaram que foi feita “a alteração da quilometragem dos veículos para potenciar o valor dos mesmos junto das seguradoras”. Acresce que as perícias revelaram também que os “números de alguns componentes foram rasurados para não se perceber que há uma troca de peças”.
De acordo com a acusação os arguidos tinham um esquema que se baseava na compra de viaturas acidentadas, nas quais a reparação era economicamente inviável para os proprietários ou para as seguradoras. Os carros eram comprados como se estivessem bons e era feito um seguro de danos próprios em nome de um dos seus colaboradores. Estes seguros eram feitos, muitas vezes, com base na confiança, sendo que o mediador de seguros nem sempre visualiza a viatura, ou quando o faz não verifica os elementos identificativos.
Depois, simulavam um acidente semelhante ao que a viatura já tinha tido para justificar os componentes a reparar. Mas, para não dar nas vistas, partiam mais um vidro, ou criavam novas amolgadelas. Participavam o sinistro e recebiam a indemnização da seguradora. O mesmo carro podia estar envolvido em vários acidentes.
Noutras situações, segundo revela a acusação, compravam um veículo semelhante para montar as peças de uma viatura que já tinha tido um sinistro. Simulavam um novo acidente e depois de receber o valor voltavam a colocar as peças originais no carro.
Quando se tratava de veículos novos adquiridos por funcionários das oficinas com recurso a crédito pessoal era feito imediatamente um seguro por danos próprios. O objectivo era conseguir receber o valor por perda total.
Muitas vezes os acidentes eram resolvidos com o preenchimento da declaração amigável ou eram chamadas as autoridades para dar mais credibilidade.
Críticas às seguradores
Para a magistrada, “não deixa de ser estranho” o facto de os peritos das seguradoras que vão avaliar os veículos acidentados não terem detectado algumas irregularidades, mas reconhece que a investigação não abrangeu as seguradoras.
“É difícil aceitar que as companhias de seguros aceitam qualquer valor que é dado a um veículo. Ao analisar estes acidentes, não consigo compreender. Os peritos vão aos locais, mas nunca detectam as anomalias. As indemnizações são sempre pagas e os seguros são aceites pelo triplo do valor dos carros”, afirmou a procuradora, sublinhando que, “de facto não se investigaram aqui as companhias de seguros”, mas que “não podia deixar de fazer esta ressalva” e que “há alguma inércia da parte das seguradoras”.
“Continuam a existir muitos ilícitos destes a ser julgados em tribunal. Continuam a existir burlas às seguradoras, porque provavelmente os peritos ou não têm formação ou não estão despertos para estas situações”, disse a magistrada, acrescentando que “quem faz estas alterações é muito profissional e faz com alguma qualidade”.
Esta rede começou a ser investigada depois de a Polícia Judiciária, que estava a investigar um grupo por furtos e viciação de viaturas, ter encontrado indícios, numa das oficinas, da existência de um outro grupo que se dedicava a burlar seguradoras. A comunicação foi feita em Abril de 2010, tendo sido aberta a investigação que acabou por revelar esta rede de mais de 70 indivíduos e que culminou com uma acusação em 2016, tendo o julgamento começado apenas em finais de 2019. A decisão do colectivo de juízes deverá ser conhecida em breve.