Os malucos das conspirações saíram da toca
Houve 27 candidatos seguidores do QAnon nas eleições de terça-feira e há 100 antigos ou actuais congressistas que apoiam o misterioso Q. Marjorie Taylor Greene foi eleita e acredita no novo culto digital.
Lembra-se da resposta de Donald Trump quando, no Verão, lhe perguntaram se concorda com a teoria conspirativa do movimento QAnon? “Não sei nada sobre isso.” E do que disse depois de a jornalista insistir? “São pessoas que amam o seu país.”
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Lembra-se da resposta de Donald Trump quando, no Verão, lhe perguntaram se concorda com a teoria conspirativa do movimento QAnon? “Não sei nada sobre isso.” E do que disse depois de a jornalista insistir? “São pessoas que amam o seu país.”
Lembra-se da resposta de Trump quando, na entrevista com público antes das eleições de terça-feira, lhe perguntaram se estava pronto a dizer, “de uma vez por todas, que a teoria conspirativa QAnon — que diz que os democratas são um cartel de pedófilos satânicos e que o senhor é o salvador — é uma falsidade total”? “Não sei nada sobre isso.” Não quereria Trump “simplesmente dizer” que a teoria QAnon “é maluca e falsa”? “Sei que eles são muito contra a pedofilia e eu sou contra a pedofilia.”
É inútil repetir que Trump está a mentir. Em Maio de 2019, o FBI identificou os movimentos marginais que defendem teorias de conspiração como uma “ameaça terrorista doméstica”. O QAnon e o Pizzagate são dois dos grupos que o FBI dá como exemplos disso. O relatório — Anti Government, Identity Based, and Fringe Political Conspiracy Theories Very Likely Motivate Some Domestic Extremits to Commit Criminal, Sometimes Violent Activity — descreve os “extremistas domésticos movidos pelas teorias da conspiração” como uma “ameaça crescente” e antecipa o aumento da ameaça nas eleições presidenciais de... claro: Novembro de 2020.
Aqui chegados, o que aconteceu? Na terça-feira, a empresária Marjorie Taylor Greene, candidata pelo Partido Republicano, foi eleita para o Congresso norte-americano pela Geórgia. Tem a partir de agora o rótulo de primeira defensora do QAnon a ser eleita “deputada” dos EUA.
Greene não se limita a partilhar os tweets do QAnon. Ela acredita. É preciso respirar fundo para assimilar a tese: “Q” é um funcionário público real que, a partir dos bastidores da Administração Trump, publica informação secreta na Internet sobre a operação que o Presidente Trump está a levar a cabo para destruir a conspiração da elite global — actores de Hollywood, George Soros, Barack Obama, Bill e Hillary Clinton, a família Bush, Bill Gates e os democratas em geral — que, escondida num “deep state”, controla o mundo e, para além disso, tem uma rede satânica de tráfico e abuso sexual de crianças, às quais é tirado o sangue para ser bebido como forma de rejuvenescimento dos poderosos.
Esta é a teoria. O que disse Greene quando lhe perguntaram porque é que partilha os tweets do QAnon? “Q é um patriota” e o movimento é “a oportunidade que surge uma vez na vida para acabar com esta cabala global de pedófilos satânicos”.
Dirão: uma maluca da Geórgia vai para Washington, que importância tem?
Era bom se estivesse sozinha. Mas Greene faz parte de um batalhão de novos políticos da era digital. Saídos da toca com a ajuda de Trump, estes novos políticos assumem sem pudor ideias lunáticas, mobilizam eleitores e afastam de cena até os republicanos pró-Trump, pró-vida e pró-armas. Foi um republicano com esse perfil que Greene derrotou nas primárias. Ele posicionou-se como “PRO-TRUMP, PRO-LIFE, PRO-GUN”, o slogan da sua campanha. Ela é tudo isso, mas tem um trunfo extra: é pró-QAnon. Agora, teve 222 mil votos, 75% do total.
Greene foi a única eleita para o Congresso. Desta vez. Nestas eleições, houve 27 candidatos — 25 republicanos, um do Partido Independente e outro independente — assumidos seguidores do QAnon. E são 100 os antigos ou actuais congressistas que apoiam o misterioso Q de forma aberta. O Media Matters for America fez uma lista exaustiva e publicou dezenas de exemplos de mensagens e posts das contas oficiais dos candidatos.
Angela Stanton-King é uma delas. Perdeu as eleições, mas teve 50 mil votos. Tem 0% de subtileza. Na sua conta no Twitter, repete os slogans do QAnon, uns atrás dos outros. Coisas como: “Verdade bombástica: isto não tem nada a ver com a covid-19 ou com o Black Lives Matter. Isto é um encobrimento gigantesco da pedofilia e do tráfico humano.” Ou: “Bom dia, quantos de vocês ainda pensam que o debate é sobre Trump ser racista e não sobre a elite global de pedófilos que traficam crianças...”. Mais? “Não sei quem precisa de ouvir isto, mas se alguma coisa acontecer a Donald Trump, o caos será lançado por todo o país.” Ou: “Não consegui encomendar uma pizza. Graças aos pedófilos.” Confuso? Está a falar do Pizzagate — o mesmo do relatório do FBI. A história da falsa pizzaria de pedófilos foi de tal forma espalhada que um louco se meteu no carro com uma arma de fogo, guiou horas até Washington, entrou na pizzaria em cuja cave estariam crianças para a rede de pedófilos gerida por Hillary Clinton e disparou. Como muitos destes novos políticos republicanos, também Stanton-King reproduz o slogan: The Storm is Here.
Deprimido? Experimente então passear pelo Twitter e Facebook destes congressistas nas últimas horas. É uma campanha de intoxicação a céu aberto. São eles que repetem que houve fraude nas presidenciais, que a contagem tem de ser interrompida, que “é estranho” Joe Biden estar a ganhar, de onde apareceram 138.339 votos para Biden num único círculo eleitoral e zero para Trump?
Com direito a espelho em Portugal. Ligo a SIC e ouço Vasco Rato dizer que “não sei se há fraude, mas que há irregularidades há”. O que o faz pensar assim? “Houve coisas um pouco estranhas, como no Michigan, onde aparecem dezenas de milhares de votos para Biden e zero para Trump.” O mesmo para os fãs de André Ventura, que reproduzem posts sobre o “estranho que é” a contagem que está a ser feita. Não interessa que o caso do círculo do Michigan seja até agora o único erro detectado na contagem de milhões de boletins de voto. Ou que o erro tenha sido corrigido 20 minutos depois. Ou que o erro seja relativo a um número provisório. Ou que o erro tenha sido identificado pelo sistema de validação e checks and balances bi-partidário que existe para a contagem de votos. Ou que o Partido Republicano tenha feito zero alarido do caso. Ou que o congressista republicano que legitimou o rumor tenha retirado o post do Twitter e pedido desculpa. São os maçadores pormenores a estragar o desenho. Para os seguidores de Trump, do QAnon ou do Chega, o que interessa é alarmar e ganhar votos.