Aos 80 anos, João Carlos Martins voltou a poder tocar piano com dez dedos graças a umas luvas biónicas
Encantou as mais respeitáveis salas do mundo com um talento que foi sendo posto à prova por vários problemas que lhe valeram 24 cirurgias e a impossibilidade de tocar. Até que umas luvas biónicas colocaram João Carlos Martins de regresso na rota das estrelas.
“Emocionada até às lágrimas...” Foi assim que a actriz Charlize Theron descreveu, no fim de Setembro, o seu estado depois de assistir a um vídeo, partilhado pela também actriz Viola Davis, onde se vê João Carlos Martins, em lágrimas, a tocar uma peça de Bach no piano, recorrendo a umas luvas biónicas.
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“Emocionada até às lágrimas...” Foi assim que a actriz Charlize Theron descreveu, no fim de Setembro, o seu estado depois de assistir a um vídeo, partilhado pela também actriz Viola Davis, onde se vê João Carlos Martins, em lágrimas, a tocar uma peça de Bach no piano, recorrendo a umas luvas biónicas.
A história de superação depressa correu mundo – e não é caso para menos. À BBC News Brasil, João Carlos Martins, de 80 anos, descreveu em entrevista, por Zoom, a sensação de voltar a tocar piano com dez dedos: “Acordo um velhinho de 230 anos e cinco minutos depois sou um garoto de 12 anos.” Um feito possível graças a umas luvas biónicas, desenvolvidas pelo designer industrial Ubiratan Bizarro a pensar no maestro e que, no início do ano, devolveram ao músico a capacidade de brilhar ao piano.
O objecto não é recente: Bizarro teve a ideia quando viu uma entrevista a João Carlos Martins na televisão. Mas foi preciso algum tempo e dezenas de protótipos para encontrar a fórmula que permitiu que o pianista mantivesse os dedos esticados. É que, depois da cirurgia realizada em 2018, que acabou com uma dor persistente que sentia desde 1965, o maestro passou a não ter força para abrir os dedos. Algo que a luva biónica (que Bizarro chama de Bionic Extender Gloves e que já começou a exportar para a Europa, segundo indica a Reuters) resolveu.
Um percurso de provações
Filho de um português de Braga, João Carlos Martins destacou-se como pianista desde muito cedo – afinal, contava com o pai como seu impulsionador, uma vez que o piano também tinha sido o sonho daquele; sonho que ficou esquecido quando perdeu um polegar numa prensa, durante o trabalho numa gráfica.
Assim, com apenas 8 anos, João Carlos Martins venceu um concurso de execução de obras de Bach e durante os anos da adolescência destacou-se no concurso da Sociedade Brito de São Petersburgo. A forma soberba como tocava levou a que, com apenas 20 anos, se apresentasse no Carnegie Hall, em Nova Iorque, tendo, a seguir, tocado com algumas das maiores orquestras mundiais e gravado a obra completa de Bach para piano.
Mas a sua carreira viria também a ficar marcada por acidentes que o limitaram e até o impediram de tocar. Em 1965, foi desafiado para um jogo de futebol, com a paulista Portuguesa. A aventura valeu-lhe uma queda, na qual perfurou o braço. O nervo ulnar foi atingido e três dedos sofreram uma atrofia, o que o obrigou a pôr de parte o piano durante um ano. Foi a pensar neste episódio que Jonas, em 2017, dedicou ao músico um golo na Luz frente ao Paços de Ferreira (e que selou a vitória do Benfica por 2-0).
Ao longo dos anos, em que dividiu as suas atenções por outras áreas, vestindo o papel de empresário (de boxe) ou mesmo de político, sofreu vários distúrbios osteomusculares. Mas foi graças ao boxe que voltou à música, segundo contou à BBC News Brasil: “Quando eu vi o juiz levantar a mão dele [do pugilista brasileiro Éder Jofre] novamente, o que me passou pela cabeça? ‘Esse homem reconquistou o título mundial para o Brasil, então quem diz que eu não posso voltar a tocar piano?’ Aquilo ajudou-me.”
Em 1978, regressou aos palcos, para um concerto esgotado em Carnegie Hall. Mas o esforço – o pianista praticava entre dez e 12 horas por dia – resultaria numa lesão por esforço repetitivo. Com “fisioterapias e cirurgias”, acabaria por conseguir voltar mais uma vez e terminar a gravação da obra de Bach. “Finalmente, parecia a vida dos sonhos.”
24 cirurgias
Apesar de muitas contrariedades, tudo parecia correr de feição. Até que, em 1995, dá-se o que parecia na altura ser o golpe final. Em Sófia, Bulgária, é vítima de um assalto, durante o qual recebe uma pancada na cabeça que origina problemas neurológicos que comprometem o funcionamento do braço direito.
As cirurgias conseguem recuperar os movimentos da mão, mas não durante muito tempo. Em 1998, dá o último concerto com as duas mãos: “Depois desse concerto, (…) cortaram-me os nervos da mão direita.”
Mesmo assim, continuou a dedilhar as teclas do piano e, em 2001, grava o álbum Só para Mão Esquerda, escrito por Maurice Ravel para Paul Wittgenstein, que perdeu o membro direito na Primeira Guerra.
O último concerto foi em 2002, em Pequim. Depois disso, recebeu a notícia que o deixou desesperado: nunca mais poderia tocar profissionalmente, nem sequer só com a mão esquerda. Dedicou-se ao ensino, criou a Bachiana Orquestra, tornou-se um reputado maestro, tocando piano, de vez em quando, com apenas os dois polegares.
“Minha carreira teve vales profundos e altas montanhas. Eu sempre digo: quando você tem um vale profundo, você precisa ter determinação”, diz o maestro na mesma entrevista.
Até que o designer industrial Ubiratan Bizarro lhe apresentou o caminho para sair do vale. “Quando ele me mostrou as luvas, brinquei que eram para boxe, não para tocar piano”, disse o pianista, citado pela Reuters. As luvas, de neopreno pretas, têm varetas que fazem com que os dedos saltem para cima depois de pressionarem as teclas, permitindo que o pianista continue a tocar, descreve a agência.
“Lembro-me que chorei muito na hora em que toquei [piano com as luvas] porque há 21 anos que eu não encostava os dez dedos no teclado”, lembra o luso-descendente. Agora, concentra-se em praticar pois, segundo a BBC News Brasil, já tem o regresso ao Carnegie Hall agendado: 17 de Outubro de 2021.