O recolher obrigatório é uma estupidez e um abuso
As leis, mesmo na pandemia, têm de ser “necessárias e proporcionais”. Proibir passeios à beira-mar depois da meia-noite não é uma coisa nem outra.
O decreto presidencial que declara o estado de emergência seguiu, como se esperava, para a Assembleia, e, visto no seu todo, só pode merecer uma rejeição absoluta de quem ainda não percebeu a gravidade da situação sanitária em que vive o país. Ninguém questiona a medição da temperatura à entrada de edifícios, uma prática cada vez mais banal; ninguém de bom senso questiona a necessidade de o Governo poder alocar funcionários públicos a tarefas de rastreio e acompanhamento de surtos de covid-19; com a mais que provável exigência do Presidente, que transformou a requisição civil de recursos dos hospitais privados na procura de acordos “com justa compensação”, os riscos de prepotência do Estado sobre os direitos da propriedade ficaram mitigados.
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O decreto presidencial que declara o estado de emergência seguiu, como se esperava, para a Assembleia, e, visto no seu todo, só pode merecer uma rejeição absoluta de quem ainda não percebeu a gravidade da situação sanitária em que vive o país. Ninguém questiona a medição da temperatura à entrada de edifícios, uma prática cada vez mais banal; ninguém de bom senso questiona a necessidade de o Governo poder alocar funcionários públicos a tarefas de rastreio e acompanhamento de surtos de covid-19; com a mais que provável exigência do Presidente, que transformou a requisição civil de recursos dos hospitais privados na procura de acordos “com justa compensação”, os riscos de prepotência do Estado sobre os direitos da propriedade ficaram mitigados.
Mas, se o alcance global do decreto pode ser facilmente entendido como necessário e proporcional, quando chega o capítulo do recolher obrigatório, fica tudo estragado. Chega a vez do ruído e do exagero que contamina o espírito do diploma. Na narrativa do decreto, esta medida excepcional que se associa a situações de guerra ou a imposições ditatoriais aparece com uma terminologia suave: “Proibição de circulação na via pública durante determinados períodos do dia ou determinados dias da semana.” E o medo de chamar as coisas pelos nomes não fica por aqui: diz o decreto que as medidas serão decididas “na medida do estritamente necessário e de forma proporcional”.
O recolher obrigatório, dissimulado ou não em palavras mansas, faz parte daquela categoria de iniciativas valentes em que o Governo se arrisca a fazer entradas de leão e saídas de sendeiro, tal como na obrigatoriedade da StayAway Covid ou na proibição de circular no dia de Finados, que, afinal, não passou de uma “recomendação agravada” com mil excepções. Não basta a uma medida ter segurança jurídica para ser útil; tem de ter lógica. O recolher obrigatório não tem lógica alguma.
Estão a ver as “autoridades públicas competentes” de um concelho decidir que não podemos passear o cão ou visitar a namorada depois das 23h das quintas ou sextas? Ninguém entenderá por que razão não pode aproveitar a solidão da noite para caminhar, quando o risco de contágio é mínimo. Se for para evitar que os jovens, apesar do encerramento dos bares, se juntem, a medida será ineficaz – basta esperar pela madrugada; se for para forçar o dever cívico de recolhimento, é uma iniciativa supérflua.
As leis, mesmo na pandemia, têm de ser “necessárias e proporcionais”. Proibir passeios à beira-mar depois da meia-noite não é uma coisa nem outra, é um abuso, que se arrisca a contaminar com a estupidez um conjunto de medidas necessárias e proporcionais.