A Fábrica onde a criatividade está “em plena laboração”

Era para ser prisão, tornou-se uma fábrica têxtil que faliu e caiu na ruína, e foi resgatada pela Câmara de Castelo Branco para ser um centro de criação e de produção cultural. “É um investimento altamente estratégico, no sentido de fixar aqui pessoas.”

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Mal se passam as portas da Fábrica, a missão que se impõe fazer é, também ela, um exercício de criatividade: imaginar este edifício de pé direito muito alto, que se ergue no centro de Castelo Branco, como uma prisão. Na verdade, era esse o propósito do projecto inicial, de construir um estabelecimento prisional, que acabou por nunca avançar. Dessa intenção, sobrou um pátio, arcadas de pedra e três torreões. Ainda lá estão as marcas das ideias antigas: nas janelas, os buracos onde se encaixariam grades. O edifício havia de ser, já nos anos 1950, transformado em fábrica têxtil, laborando assim até finais do século XX, altura em que faliu. Em 2004, o município de Castelo Branco comprou o edifício. E assim ficou. Quinze anos depois, devolveu-o à população novamente sob a forma de uma fábrica, mas, em vez dos têxteis, a matéria-prima que ali entra são ideias, sonhos antigos, necessidades, transformadas por pessoas em arte e cultura. Por isso lhe chamaram Fábrica da Criatividade. 

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Mal se passam as portas da Fábrica, a missão que se impõe fazer é, também ela, um exercício de criatividade: imaginar este edifício de pé direito muito alto, que se ergue no centro de Castelo Branco, como uma prisão. Na verdade, era esse o propósito do projecto inicial, de construir um estabelecimento prisional, que acabou por nunca avançar. Dessa intenção, sobrou um pátio, arcadas de pedra e três torreões. Ainda lá estão as marcas das ideias antigas: nas janelas, os buracos onde se encaixariam grades. O edifício havia de ser, já nos anos 1950, transformado em fábrica têxtil, laborando assim até finais do século XX, altura em que faliu. Em 2004, o município de Castelo Branco comprou o edifício. E assim ficou. Quinze anos depois, devolveu-o à população novamente sob a forma de uma fábrica, mas, em vez dos têxteis, a matéria-prima que ali entra são ideias, sonhos antigos, necessidades, transformadas por pessoas em arte e cultura. Por isso lhe chamaram Fábrica da Criatividade. 

A estética fabril ainda lá está: os canos, as condutas visíveis, que contrastam com as arcadas de pedra, numa área com cerca de dois mil metros quadrados para criar o que se quiser. “Este é um projecto que tem como único objectivo a produção artística”, resume Carlos Matos, o homem que tem a missão de o coordenar.

A Fábrica da Criatividade foi idealizada a partir das vontades, das necessidades da comunidade artística local: o município perguntou-lhes de que espaços, de que ferramentas e equipamentos precisavam para desenvolver as suas actividades. 

O arquitecto Mário Benjamim tratou de pôr em projecto esses desejos e, mais de dois milhões de euros depois, a Fábrica abriu portas a 3 de Janeiro de 2019, com 19 valências diferentes, entre oficinas, ateliers, escritórios, um auditório, camarins, sala de conferências. Que é o mesmo que dizer que há espaço e equipamento para quem quiser criar dentro de áreas artísticas e performativas, como teatro, dança, música, cinema, vídeo e televisão, mas também em design e artes gráficas, fotografia, arquitectura.

Tudo num mesmo espaço físico e flexível, num concelho do interior, com cerca de 56 mil habitantes, mas que tem uma oferta cultural tão intensa, porventura só comparada com a de Lisboa e Porto. Quem puxa pelos galões é o presidente da câmara albicastrense, José Augusto Alves, que aponta uma característica única da Fábrica: trabalha 24 horas por dia, os 365 dias do ano. “É uma forma de alavancar tudo o que é cultura”, diz o autarca, e também uma oportunidade que o município quis criar para que quem se forma na Escola Superior de Artes Aplicadas, do Instituto Politécnico de Castelo Branco (IPCB), tenha onde trabalhar os seus projectos. “No fundo, é criar condições de atractividade para os nossos jovens.” Para que se fixem no território, assolado pela desertificação. “Potenciamos a economia local, damos ligação ao que se faz aqui e projectamos Castelo Branco”, resume José Augusto Alves. 

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As artes gráficas são uma das áreas fortes da Fábrica da Criatividade. Na imagem, o ilustrador Aires Melo em processo de laboração. daniel rocha

A fundação 

Entrando fábrica adentro, o outrora projectado pátio da prisão deu lugar a um auditório, o “centro nevrálgico das actividades performativas” — hoje um “espaço de liberdade”, nota Carlos Matos, nosso guia nesta visita. Ali, os artistas encontram equipamentos de som, luz e vídeo, camarins. Mas, avisa o coordenador, não é suposto ser uma sala de espectáculos. “É uma sala de trabalho, uma sala experimental.”

O objectivo, prossegue, foi dotar o espaço com valências “o mais transversais possível, para dar resposta ao maior número de actividades”: além das artes performativas, audiovisuais e multimédia, a ideia é fomentar o design, “pegar nas artes e ofícios e dar-lhe um cunho moderno”. No fundo, oferecer outras possibilidades: uma oficina de serigrafia, de gravura, de cerâmica ou de cutelaria. 

É costume Vasco Veríssimo estar debruçado sobre uma das máquinas da sala de serralharia ou da carpintaria, envolto por um barulho ensurdecedor. Depois da licenciatura em design gráfico, na qual se descobriu no design de produto e, depois, na cutelaria, o jovem de 23 anos foi passar uma semana à Fábrica e não saiu mais dali.

“Tinha zero experiência. Tinha experiência em metais e madeiras da escola, mas em facas não tinha praticamente nada”, conta. Nos últimos meses, tem-se dedicado a fazer nascer forma e obra de um tronco de madeira e de uma barra de ferro, facas funcionais por encomenda para chefes ou restaurantes. 

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O músico mexicano Bertrand Chavarria-Aldrete vive em Paris, está a fazer doutoramento em Malmö e cria na Fábrica. E pretende criar pontes entre a cidade sueca e Castelo Branco para “tentar fazer projectos colaterais”. daniel rocha

Valor económico 

Se a Escola Superior de Artes Aplicadas do IPCB é um dos “alicerces” do projecto, a Fábrica não é lugar para “dar formação”. “O que pretendemos é que os alunos, e não só, encontrem espaços para trabalhar”, diz Carlos Matos, que é também professor de artes visuais. “Não é um sítio para desenvolver trabalho académico. É um sítio para desenvolver trabalho concreto, que tenha depois valor económico lá fora.”

Anabela Gama, de 45 anos, e Helder Veiga, de 44, sempre sentiram a necessidade de “criar coisas”, além do trabalho numa empresa de engenharia (o dela) e da serralharia. Dessa vontade de criar nasceu o projecto Catavento, onde fazem peças de decoração essencialmente com ferro e madeira — algumas inspiradas no bordado de Castelo Branco.

Chegaram a montar uma oficina numa casa que têm numa aldeia a 40 quilómetros de Castelo Branco, mas não era prático. “Quando nos surgiu a Fábrica foi quase um milagre para o que queríamos fazer”, recorda Anabela. 

Nesta altura, a Fábrica acolhe 42 projectos activos, sobretudo de pessoas da região. Mas está a crescer a capacidade de atracção de pessoas de fora da cidade. Esses projectos envolvem pessoas de Faro, de Lisboa, de Santarém, de Viseu, do Porto, de Coimbra, de Paris e Salzburgo. Este ano, mesmo com todas as condicionantes, acolheram 35 residências. 

Bertrand Chavarria-Aldrete é um dos inquilinos estrangeiros. O músico de 41 anos é mexicano, vive em Paris, onde dá aulas de guitarra, e tem uma bolsa de doutoramento em Malmö, na Suécia. Foi um dos artistas convidados para o Festival Dias de Música Electroacústica e aproveitou uma blackbox da fábrica para ensaiar e para trabalhar no seu doutoramento, que tem como princípio a exploração da extensão plástica da música.

Agora, a ideia é criar pontes entre Malmö e Castelo Branco para “tentar fazer projectos colaterais”. Será mais um passo na internacionalização da Fábrica. 

Há ainda espaço para uma oficina têxtil, fazendo jus à outra vida que aquele edifício teve. Nos primeiros meses da pandemia, foi ali criado o centro de recursos covid do município. “Utilizámos os equipamentos, mesas de corte para criar materiais de protecção individual”, como máscaras, cógulas e viseiras que foram cedidas às instituições do concelho, numa altura em que o mercado não respondia à procura, recorda Carlos Matos. “Chegámos a ter 70 costureiras em regime de voluntariado e 20 impressoras 3D a trabalhar.”

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Foi a cianotipia, processo de impressão que produz imagens em tons de azul, que trouxe o designer gráfico Jorge Portugal à Fábrica da Criatividade. Na calha, tem a montagem de uma exposição e a produção de um livro infantil. daniel rocha

Máxima confiança 

designer gráfico Jorge Portugal embarcou na Fábrica depois de há uns anos ter ficado “apaixonado” pela cianotipia, o processo de impressão fotográfica que produz imagens em tons de azul. “Quando surge a Fábrica da Criatividade, percebendo que as condições eram boas para isso, achei que era uma boa forma de controlar o processo”, conta. 

Na carteira de sonhos está o desenvolvimento de um livro infantil, com recurso à cianotipia, todo feito à mão a partir da Fábrica.

Por ali, os projectos começam a cruzar-se, a despontarem colaborações entre si. Para breve, a partir de desenhos e ilustrações feitos por outros artistas residentes, o designer irá preparar cianotipias para expor. 

Anabela e Helder estão a fazer peças em madeira para servirem de suporte aos azulejos que a ceramista Rosário Belo, também artista residente, está a desenvolver. Vasco tem a intenção de introduzir o vidro nas suas facas, porque Felicity, uma escocesa de 70 anos, está na Fábrica a fazer jóias em vidro.

Às vezes queremos criar, mas não há o espaço ou não há a ferramenta ou não há a disponibilidade e aqui há uma série de meios que fomentam e alimentam a criação”, atira Carlos Matos. 

Quem quiser usar um espaço da Fábrica pode candidatar-se, explicar o projecto a desenvolver, o espaço que pretende ocupar e por quanto tempo. E juntar um currículo para que seja avaliada a capacidade de usar as máquinas. Ali, “o trabalho é autonomia” e o princípio é o da “máxima confiança”. Ferramenteiro aberto. Leva-se o que se precisa e no fim do dia devolve-se. 

Pelo menos nos três primeiros anos de actividade, o município decidiu que não há lugar a pagamento de qualquer aluguer para utilizar o espaço. “É um investimento altamente estratégico, no sentido de fixar aqui pessoas”, nota o coordenador. 

Apesar do rótulo de interior, Carlos Matos acredita que a Fábrica beneficia de uma posição estratégica: Lisboa e Porto não estão tão longe assim e Madrid, Cáceres, Salamanca, Badajoz estão próximos.

A questão económica, sublinha, “é importante para o validar na comunidade”. “[A Fábrica] dá-nos condições para que se produza e se crie riqueza aqui. Por muitas razões: para valorizarmos o trabalho artístico, mas também para que a criatividade permita mais-valias económicas para quem investe e se dedica. Os artistas precisam de ter condições económicas para continuarem a sê-lo.”

Por agora, a missão não é programar. “Não há essa pressão sobre os artistas que aqui estão”, esclarece Carlos Matos. “Este é um espaço que funciona de forma complementar, dando as condições para que quem trabalhe para a Cultura Vibra [a agenda cultural do município] possa fazê-lo aqui. Mas que também o possa fazer para a Gulbenkian ou para Serralves”, diz. Até ao final do ano, os espaços estarão próximo da sua capacidade plena. Ao fim de quase dois anos de actividade, a Fábrica da Criatividade já pode dizer que está “em plena laboração”.