A América em cacos: a vitória-derrota de Joe Biden
Para além do grande agitador e responsável que é Donald Trump, Joe Biden e o Partido Democrata não estiveram à altura do que se exigia nestes tempos difíceis para a democracia nos EUA.
1. Quando na Europa, ao início de uma manhã de 4 de Novembro — o dia seguinte às eleições presidenciais nos EUA —, não sabemos já quem foi eleito é sinal seguro que algo correu mal. Lembro-me bem da última vez que isso aconteceu em 2000. Na altura, o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush ficaram encravados na votação da Florida, ambos reclamando vitória. Várias semanas depois — ao longo das quais foram efectuadas sucessivas recontagens de votos e também não faltaram pressões políticas e acções judiciais — o Supremo Tribunal declarou George W. Bush vencedor, sendo este eleito Presidente dos EUA.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. Quando na Europa, ao início de uma manhã de 4 de Novembro — o dia seguinte às eleições presidenciais nos EUA —, não sabemos já quem foi eleito é sinal seguro que algo correu mal. Lembro-me bem da última vez que isso aconteceu em 2000. Na altura, o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush ficaram encravados na votação da Florida, ambos reclamando vitória. Várias semanas depois — ao longo das quais foram efectuadas sucessivas recontagens de votos e também não faltaram pressões políticas e acções judiciais — o Supremo Tribunal declarou George W. Bush vencedor, sendo este eleito Presidente dos EUA.
Nesta altura, a 4 de Novembro de 2020, ainda não sabemos quem foi o vencedor das últimas eleições presidenciais. Pelos dados disponíveis, é ainda o mais provável que seja Joe Biden como amplamente antecipavam a sondagens e, sobretudo, ardentemente se desejava nas grandes cidades costeiras dos EUA e na Europa. Mas uma eventual vitória de Joe Biden e do Partido Democrata já adquiriu sérias tonalidades de derrota. Estas vão pesar duramente sobre o seu mandato, caso se venha a confirmar a sua eleição nos próximos tempos.
2. Um dos maiores problemas das eleições norte-americanas de 3/11/2020 foi o da obsessão com Donald Trump, quer por aqueles que o idolatram e o seguem acriticamente, quer por aqueles que o detestam ou odeiam por razões ideológicas e/ou de personalidade. Para esta hipermediatização, como agrada ao ego de Donald Trump, paradoxalmente muito contribuíram os seus críticos, em especial nos media liberais-progressistas. Nestes últimos quatro anos, do Washington Post ao New York Times, da CNN à revista Time, provavelmente nunca nenhum político teve tanto destaque e ocupou tal espaço nas notícias como Donald Trump (nem mesmo o idolatrado Barack Obama).
Quanto à imprensa europeia, tornou-se, quase sempre, um mera caixa de ressonância acrítica dessa visão jornalística dos media liberais-progressistas dos EUA. Poderíamos pensar que tal imprensa negativa e contundentemente crítica destruiria facilmente Donald Trump, deixando-o sem quaisquer hipóteses políticas. Na realidade essa hipermediatização, feita sistematicamente pela negativa, acabou por ser frequentemente útil para a estratégia política de Donald Trump. Para além de preencher, como notado, o seu ego compulsivamente narcisista, teve um efeito político em grande parte inverso ao que pretendiam os seus críticos e detractores: deu credibilidade à retórica sobre a distorção da realidade feita pelos media liberais-progressistas junto de partes substanciais do eleitorado, sobretudo no interior dos EUA. Esse é um eleitorado já predisposto a tal ideia, pois há muito desconfia das elites liberais da costa Leste e Oeste.
3. Como notado, a consequência pior da hipermediatização descrita da figura de Donald Trump foi que quase toda esta eleição se fez à volta das suas afirmações e personalidade. Levou a um grau de personalização do debate político largamente indesejável numa democracia, facto que seus críticos, ainda que involuntariamente, agravaram. Na economia interna, no comércio internacional e na política externa, as ideias políticas de Donald Trump, apesar de erráticas e/ou incoerentes (ou mesmo perigosas), foram amplamente divulgadas, contestadas ou ridicularizadas. Mas a consequência dessa omnipresença de Trump é que as suas ideias são bem conhecidas de todos, dentro e fora dos EUA. O mesmo não se pode dizer do seu opositor do Partido Democrata, Joe Biden. A personalidade e ideias políticas deste último foram, quase sempre, transmitidas como uma (vaga) boa alternativa ideológica e moral às ideias política e à personalidade censurável de Trump.
Para além do expectável em qualquer candidato do centro-esquerda democrático — defesa de impostos mais equitativos para os contribuintes norte-americanos, defesa do ingresso dos EUA no Acordo de Paris e penalização das indústrias poluidoras como a petrolífera, ou regresso do multilateralismo na política externa, etc. — não houve nenhuma ideia/slogan amplamente mobilizadora do eleitorado. E a política externa dos EUA raramente é uma motivação maior do voto dos eleitores norte-americanos, mesmo tendo em conta a rivalidade crescente com a China e a situação excepcional gerada pela pandemia da covid-19. Foi pouco em termos de substância política para Joe Biden criar uma genuína alternativa entusiástica e uma onda política mobilizadora. Talvez a tenha criado nos aliados tradicionais dos EUA no exterior, sobretudo na Europa, mas isso não lhe dá os votos de que necessita para ser eleito.
4. Tem-se falado (demasiado) do Partido Republicano e (muito) pouco do Partido Democrata. Parte importante do problema a que estamos a assistir deve-se às fraquezas e contradições políticas do Partido Democrata. No clássico bipartidismo dos EUA é a alternativa natural de poder de perfil liberal-progressista face ao conservadorismo-nacionalista de Donald Trump e dos Republicanos actuais. Todavia, Joe Biden é um político da velha guarda do Partido Democrata que, independentemente das suas qualidades, não representa qualquer renovação política, nem uma abertura aos mais jovens e a outros grupos tradicionalmente sub-representados. Pelo contrário, de forma justa ou injusta, pode ser facilmente criticado e atacado como não sendo mais do que o rosto do velho establishment e de estar próximo do lado mais obscuro dos interesses político-económicos que se movem à volta da política federal.
Quanto a Nancy Pelosi, que chefiava até agora o Partido Democrata na Câmara dos Representantes — e era a Presidente dessa câmara parlamentar desde 2019 — é uma veterana, com oitenta anos, da política dos EUA. Também aí não houve qualquer de renovação política até às actuais eleições. Para um partido que promove ideias políticas liberais-progressistas e uma imagem de abertura à sociedade e às suas transformações, as suas lideranças são das mais imutáveis e conservadoras do establishment. Apenas a candidata a vice-Presidente, Kamala Harris, mostrou alguma transformação e renovação do partido Democrata, em termos etários e a outros grupos/ideias da sociedade norte-americana. Mas, como já sublinhado, é pouco.
5. Face às elevadas expectativas de um vitória esmagadora de Joe Biden, que não se confirmaram, e às profundas divisões que vão permanecer na sociedade e na política norte-americana, Joe Biden será provavelmente uma espécie de vencedor-derrotado (vencedor das eleições de 3/11, derrotado pelas condições de governo e profundas divisões que irá enfrentar, que lhe podem retirar ampla margem de manobra política). Se for assim é um resultado mau para os EUA, quer no plano da política interna, quer no plano da política externa. Donald Trump acaba por conseguir obter nesta eleição talvez o resultado que melhor serve os seus interesses políticos. Estava fora do seu alcance uma vitória clara e inquestionável obtendo a maioria dos votos no colégio eleitoral (e também, embora não sendo esse o critério de escolha do presidente, uma clara e sólida maioria dos votos a nível nacional). Mas perdendo por margens que ficam (muito) próximas da vitória em vários Estados da federação, a situação inverte-se.
Se for assim, o ónus de uma vitória ilegítima que pairou sobre si em 2016, sobretudo pela votação nacional inferior a Hillary Clinton, poderá agora pairar, por suspeitas de fraude ou manipulação ilegítima de votos, sobre Joe Biden.
Ao demonstrar nas urnas eleitorais que tem significativamente mais votação (e apoio) do que a que as sondagens e os media liberais lhe atribuíam, teve outros ganhos políticos de relevo. Esse resultado permite renovar o ataque à imprensa e às elites liberais. Será usado como uma prova de que estes tentam impedir (e suprimir) a opinião e o voto conservador de milhões de cidadãos, o qual não se pode expressar livremente nos media liberais e a nas sondagens. A América, mais uma vez, ficou em cacos. Para além do grande agitador e responsável pelo caos que é Donald Trump, Joe Biden e o Partido Democrata não estiveram à altura do que se exigia nestes tempos difíceis para a democracia nos EUA.