A criação da Ordem dos Assistentes Sociais foi um erro
O que resulta da criação da Ordem dos Assistentes Sociais é a transformação deste campo de atividade, rico e pluridisciplinar, numa reserva abusivamente monopolizada pelos licenciados em serviço social.
A criação da Ordem Profissional dos Assistentes Sociais, em Agosto de 2019, pela Assembleia da República, foi um erro. Um erro porque instituiu o fechamento monopolista de um segmento do mercado de trabalho, protegendo corporativamente os licenciados em serviço social e impedindo o acesso livre e competitivo de muitos outros diplomados a uma atividade para a qual detêm, também, competências necessárias e adequadas.
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A criação da Ordem Profissional dos Assistentes Sociais, em Agosto de 2019, pela Assembleia da República, foi um erro. Um erro porque instituiu o fechamento monopolista de um segmento do mercado de trabalho, protegendo corporativamente os licenciados em serviço social e impedindo o acesso livre e competitivo de muitos outros diplomados a uma atividade para a qual detêm, também, competências necessárias e adequadas.
Não posso deixar de escrever este artigo, por várias razões. Em primeiro lugar, porque sou reitora de uma universidade onde se formam diplomados de várias áreas disciplinares, muitos dos quais, ao longo dos anos, exerceram ou exercem a sua atividade profissional nos domínios da ação e da proteção social, na administração pública central e local, no terceiro sector, ou em escolas e instituições de saúde e de segurança social. Nos cursos de serviço social, de gestão, de economia, de psicologia das organizações, de sociologia, de antropologia, de recursos humanos, de políticas públicas, de ação humanitária, de estudos do desenvolvimento, de ciência política formam-se todos os anos diplomados com competências para exercer atividade em vários sectores e domínios, entre os quais a ação e proteção social. Não posso aceitar que uma área de aplicação como a ação social possa agora ser reservada apenas para alguns dos nossos diplomados, sem qualquer contrapartida na qualidade dos serviços prestados, os quais, bem pelo contrário, ficariam empobrecidos.
Em segundo lugar, sou socióloga e comecei a minha atividade profissional num projeto de intervenção social, no caso, um projeto em bairros desfavorecidos que tinha como objetivo recuperar para a escola jovens adolescentes em situação de abandono escolar. Sei, por experiência própria, que os projetos de intervenção social exigem o envolvimento de diferentes profissionais e que é do trabalho de equipas pluridisciplinares que resultam novos conhecimentos e práticas inovadoras. Os projetos de intervenção social precisam de lideranças e de profissionais com várias valências. As lideranças requerem competências que podem ser adquiridas em qualquer curso superior, pelo que não podem ser uma reserva dos diplomados em serviço social.
Em terceiro lugar, há vários anos que estudo academicamente o tema das profissões e das ordens profissionais. O que me permite afirmar que a maioria das ordens profissionais criadas em Portugal desde meados dos anos 90 não tem qualquer justificação do ponto de vista do interesse público. Não se destinam a instituir mecanismos de autorregulação visando a proteção dos beneficiários da atividade de profissionais, como acontece nos casos dos médicos, dos advogados e dos engenheiros civis. Têm apenas como finalidade fechar segmentos do mercado de trabalho e proteger corporativamente alguns profissionais, criando, através da obrigatoriedade de inscrição, monopólios para diplomados de determinadas áreas disciplinares no exercício de atividades que podem ser exercidas por diplomados de muitas outras áreas.
O campo de atividade da ação e da proteção social, do combate à pobreza e às desigualdades sociais e económicas, da integração e da inclusão social, tem sido aberto e pluridisciplinar, beneficiando do contributo, do conhecimento e da ação profissional de economistas, juristas, antropólogos, psicólogos, sociólogos, animadores e mediadores culturais, arquitetos e engenheiros, médicos e até de assistentes sociais, entre muitos outros. Basta pensar em grandes programas lançados no nosso país nos últimos 30 anos, como o Plano Nacional de Erradicação da Pobreza, o Rendimento Social de Inserção, o Combate ao Trabalho Infantil, o Complemento Social para Idosos, ou os Programas de Realojamento e de Habitação Social, para se perceber do que estou a falar. Dizer hoje que trabalhar em projetos como estes só é possível se se tiver uma licenciatura em serviço social, significa que personalidades como Manuela Silva e Carlos Farinha Rodrigues, economistas, ou Nuno Portas e Siza Vieira, arquitetos, não teriam podido trabalhar nos projetos que animaram as suas vidas profissionais e a quem o país muito deve.
O que resulta da criação da Ordem dos Assistentes Sociais é, simplesmente, a transformação deste campo de atividade, rico e pluridisciplinar, que convoca e necessita do contributo e do conhecimento de vários profissionais, numa reserva abusivamente monopolizada pelos licenciados em serviço social. Espero que o Governo, que tem agora a responsabilidade de regulamentar e de definir a profissão, aproveite para corrigir ou mitigar os efeitos mais negativos deste erro. E isso é relativamente simples: basta que não se confunda a definição da profissão com a instituição de atos profissionais reservados aos membros da Ordem entretanto criada.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico