Chile: para além da velha Constituição
Não é possível um processo constituinte verdadeiramente democrático sob a égide de um governo elitista e antipopular.
Há pouco mais de 1 ano se iniciava no Chile a maior manifestação popular contra o governo liberal conservador do país. Herdeiro da política económica da ditadura de Pinochet, esse modelo político foi o laboratório para políticas neoliberais no mundo e foi utilizado como exemplo de êxito da política de estado mínimo e seus supostos benefícios económicos.
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Há pouco mais de 1 ano se iniciava no Chile a maior manifestação popular contra o governo liberal conservador do país. Herdeiro da política económica da ditadura de Pinochet, esse modelo político foi o laboratório para políticas neoliberais no mundo e foi utilizado como exemplo de êxito da política de estado mínimo e seus supostos benefícios económicos.
As manifestações que tiveram início através das reivindicações de estudantes de secundária que paralisaram as estações de metro com protestos contra o aumento na tarifa de transportes públicos a entoar as palavras de ordem: “evadir, no pagar, otra forma de luchar” – rapidamente se converteram em protestos contra a ordem hegemónica neoliberal instaurada no país há décadas, e culminaram no último dia 26 de outubro na vitória por plebiscito do “Apuebro”. Essa decisão abre caminho não só para substituição da Constituição de Pinochet - que foi reformada pelo menos 33 vezes, e se manteve viva, principalmente as normas neoliberais vinculadas às privatizações – mas, na tentativa de rutura com a política de austeridade e exploração da classe trabalhadora precarizada.
A crítica ao caráter conservador que teve a passagem da ditadura à democracia, marcada pelas heranças do regime de Pinochet e pela manutenção da Concertación - aliança entre o Partido Socialista e a Democracia Cristã - do modelo económico neoliberal – teve como principal oposição a Frente Ampla, principal força da nova esquerda, que teve um papel fundamental na convocação da Assembleia constituinte.
As mobilizações, a greve geral, mas sobretudo a luta massiva e radical dos jovens, das mulheres, do povo indígena Mapuche (extremamente marginalizado no país) e de toda a classe trabalhadora chilena trouxeram não só ânimo novo, como demonstraram o papel importante dos que não se subjugam ao carreirismo, ou se intimidam com o medo – e nos recordam que nenhum projeto de mudança é possível sem uma renovação da política. A ter isso em conta uma das propostas aprovadas implica a adoção da paridade de género neste novo órgão constituinte, o que representa uma conquista importante.
A resposta do governo de Sebastián Piñera foi a intimidação através do endurecimento da Lei de Segurança de Estado, que visa agilizar processos judiciais e efetuar penas mais severas contra destruição do patrimônio público, esse tipo de medidas só mobilizou ainda mais os manifestantes. Os protestos deixaram explícitos ao mundo que mesmo com uma economia estável sem justiça social grande parte da população não se beneficia dela. A vitória por ampla maioria defende não só que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte eleita pelo povo, mas repudia a proposta do atual parlamento de que pelo menos metade da Convenção Constituinte fosse composta por parlamentares atuais.
O plebiscito representou não só uma derrota para a direita, mas sobretudo uma resposta a todos os políticos que se autoproclamam democráticos e, mesmo com o fim da ditadura, não foram capazes de reivindicar mudanças no sistema político, económico e social no país. Nesse sentido, é sempre relevante lembrar que o voto não substitui a luta política, a mobilização continua pelo fim da repressão estatal e pela libertação dos milhares de presos políticos.
Manobras para silenciar a vontade do povo no processo constitucional farão daqui para frente parte das estratégias de setores conservadores como forma de veto às medidas mais radicais. Por isso, os progressos futuros só serão possíveis com a organização popular. Assembleias em escolas, sindicatos e bairros, são o caminho para que essa nova Constituição represente uma rutura real com o atual sistema político e económico, que só será possível se representantes populares a serem eleitos em abril forem fruto desse debate e mobilização. Não é possível um processo constituinte verdadeiramente democrático sob a égide de um governo elitista e antipopular.