Frivolidades
Não vejo maior “frivolidade” do que considerar que um OE é uma forma de conteúdo insignificante em termos de decisão política.
O editorial deste jornal do passado dia 28 de Outubro, subscrito pelo seu diretor, a propósito do significado dos sentidos de voto do Orçamento do Estado (OE) para 2021, exprime, em meu entender, duas ideias de tal maneira frágeis e até mistificadoras que me surpreende que possam por aí correr sem crítica.
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O editorial deste jornal do passado dia 28 de Outubro, subscrito pelo seu diretor, a propósito do significado dos sentidos de voto do Orçamento do Estado (OE) para 2021, exprime, em meu entender, duas ideias de tal maneira frágeis e até mistificadoras que me surpreende que possam por aí correr sem crítica.
A primeira é que, dada a situação de crise económica e social do país (a que já aí está e a que vai vir), o OE para 2021 tem de ser forçosamente viabilizado pelos partidos políticos como questão de “interesse nacional”, de salvaguarda da “estabilidade” e de “sentido de responsabilidade”. Não se discute mesmo, ou só de maneira absolutamente superficial, o seu conteúdo: é uma questão de ritual patriótico. Tem de se engolir sem discussão, ou só com uma discussão a fingir para depois engolir mesmo. Não o fazer, escreve o diretor do PÚBLICO, é uma forma suprema de “frivolidade”.
Acontece que não vejo maior “frivolidade” do que considerar que um OE é uma forma de conteúdo insignificante em termos de decisão política. Um OE, sobretudo o que pretende fazer face à imensa vaga de crise sanitária e social que se prepara, é a expressão política, económica e financeira da estratégia com que o Governo se prepara para a enfrentar. Não haveria pior forma de “frivolidade” do que, perante o que se considera ser a substancial insuficiência do OE para responder à maré de falências, despedimentos, desemprego, despejos, SNS assoberbado e insuficiente, fingir que nada disto é determinante e viabilizar um OE que, ele sim, não corresponde ao “interesse nacional”. Como se um orçamento incapaz de defender as pessoas, os seus empregos e empresas, as suas casas, não constituísse o principal fator de instabilidade. E aprová-lo nestes termos não fosse, isso sim, a própria demissão do “sentido da responsabilidade”.
Argumentam com ar definitivo os arautos da “responsabilidade” que afinal o Bloco de Esquerda já votou antes cinco orçamentos. Mas será assim tão difícil de entender que, sendo este OE de continuidade com os anteriores, a sua qualidade muda por força da gravidade da crise que vem e da consequente necessidade de medidas excecionais e estruturais para lhe responder?
Precisamente, o Bloco entendeu que este OE falha em quatro frentes essenciais para responder ao desastre social que se aproxima: as insuficiências estruturais do SNS (sobretudo quando a pandemia se agrava); a gritante injustiça das leis laborais impostas pela troika (e mantidas por este Governo) perante a vaga de despedimentos e desemprego que aí vem; a desproteção, a falta ou a exiguidade de apoios para milhares de precários e trabalhadores informais que ficaram sem rendimentos; e o escândalo do erário público continuar a pagar, apesar dos truques do Governo para o disfarçar, os negócios obscuros do Novo Banco e da Lone Star.
O Bloco terá considerado que alguns avanços ocorridos nas negociações foram, todavia, essencialmente insuficientes – porque basicamente retóricos – para uma resposta à altura da gravidade da situação. Já haveria, parece, muita promessa por cumprir dos compromissos anteriores. E considerou que, à luz dos interesses que eleitoralmente representa, devia ter a posição que anunciou na generalidade. Escandaliza-se o diretor do PÚBLICO com o facto de o Bloco votar coerentemente, acusando-o de “impor a sua ideologia minoritária ao país”. Como se em democracia o papel dos partidos políticos não fosse agir e votar de acordo com a visão que têm do interesse do país. Como se o seu dever fosse agir e votar contra aquilo que representam e por que foram eleitos e submeter-se a uma qualquer visão univocamente imposta do “interesse nacional”. “Frivolidade”, no meu modesto entender, é achar que do alto de alguma ignota legitimidade se pode decretar uma visão unilateral do “interesse nacional” e lançar impropérios sobre quem lhe não obedece. Por mim, acho que os tempos da União Nacional já lá vão há quase meio século. E que o “interesse nacional”, em democracia, há-de ser o fruto do debate frontal entre as diferentes visões do interesse nacional. Perante a gravidade do que se advinha, o Bloco fez bem em apresentar a sua e agir de acordo com ela.
A segunda atitude que me espanta é a pletora de oráculos do que pensam os eleitores do Bloco que por aí floresce nestes dias. Não há comentador sagaz, sobretudo da área do partido do Governo ou que por aí ande, que, qual interprete privilegiado da consciência política dos eleitores do Bloco, não venha exprimir a sua vontade alegadamente contrária ao sentido de voto do partido. Nunca tanto comentador da área do poder se preocupou tanto com os apoios eleitorais do Bloco. Tal solicitude há-de ser até tocante para os dirigentes e deputados do partido. Por mim, acho que os bloquistas agiram precisamente de acordo com o mandato que têm dos eleitores e, sobretudo, com a conceção da defesa dos interesses do país por que sempre se bateram. Na devida altura os eleitores falarão pelo voto. Aos oráculos inquietos sempre direi que não há expressão mais deprimente da “frivolidade” do que confundir desejos com realidades.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico