“A pressão crescente da ciência e, sobretudo, das técnicas sobre a cultura, está ligada (…) à constante necessidade de progresso e renovação da produção, ao movimento que imprime a publicidade omnipotente, às servidões financeiras de toda a espécie.” Dante Panzeri, jornalista argentino
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“A pressão crescente da ciência e, sobretudo, das técnicas sobre a cultura, está ligada (…) à constante necessidade de progresso e renovação da produção, ao movimento que imprime a publicidade omnipotente, às servidões financeiras de toda a espécie.” Dante Panzeri, jornalista argentino
Povo roubado
Dante Panzeri tornou-se uma obsessão para Sebastián Kohan Esquenazi desde que este se cruzou, aos 30 anos, com um livro do jornalista argentino de que nunca tinha ouvido falar Fútbol: la dinámica de lo impensado. Passou anos a tentar localizar os herdeiros para reeditar a obra e muitos mais para completar um documentário sobre aquele a quem chama “o melhor jornalista de desporto da história”. Panzeri escreveu um livro para dizer que o futebol não se aprende em livros e para dizer que o futebol é apenas um jogo, algo “tão óbvio como perigoso”. O jornalista, cujas opiniões contundentes e irredutibilidade de princípios lhe valeram grandes dissabores e o relativo esquecimento depois da sua morte, foi “um visionário que previu o que iria acontecer com o futebol antes de qualquer outro se dar conta” – uma indústria de milhões submetida aos interesses de empresários. Como refere Sebastián Kohan, no texto que escreveu para a revista Gatopardo, “o futebol era do povo até que o mercado, disfarçado de ciência, o roubou”. Para Panzeri, no futebol “não havia nada de novo, só o esquecido” e que isso do futebol moderno não existia porque, na verdade, só havia dois tipos de futebol: o bem jogado e o mal jogado. Porque “o futebol, para ser sério, tem de ser jogo”.
Evitar uma guerra civil
O escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán morreu no aeroporto de Banguecoque de ataque cardíaco num mês de Outubro de há 17 anos e em semana de clássico do futebol espanhol, como foi esta, alguns terão recordado os seus duelos de antevisão dos jogos nas páginas do El País; entre ele, adepto do Barcelona, e Javier Marías, o único seguidor do Real Madrid que consegue fazer-nos acreditar por breves instantes que este não foi o clube privilegiado no tempo da ditadura. Montalbán sublinhava em 1973 que “o futebol era uma peça indispensável para a compreensão total de trinta anos da História de Espanha” e da afirmação do Barcelona como símbolo da resistência catalã ao poder central da ditadura do general Franco, representada em campo pelo Real Madrid. Ao mesmo tempo que fazia “pela unidade de Espanha mais que outra coisa ou quase ninguém”. Daí que os “confrontos” jornalísticos entre os dois escritores por causa de um jogo de futebol, pelo menos duas vezes por ano, permitissem ao assunto estender-se para outros temas político-sociais. “Eu não estou contra o madridismo”, afirmava Montalbán, “alimento esse antagonismo entre o Barcelona e o Madrid porque graças a ele evitámos uma nova Guerra Civil, apesar de tudo o que fizeram os árbitros para a provocar.”
A fuga de Pelé
Para muitos que não viram Pelé a jogar, a memória mais viva é a do seu pontapé de bicicleta no encontro entre os prisioneiros aliados contra a selecção do III Reich, em que uma equipa de malnutridos reclusos, com um guarda-redes americano que nem sequer sabe as regras (Sylvester Stallone), consegue impor um empate com sabor a vitória à poderosa Alemanha. A certa altura, quando o treinador (Michael Caine) explica algumas tácticas, Pelé, com ar de menino traquina de bairro, desses que cresceram com a bola coladinha aos pés, chega-se à frente e desenha no quadro de ardósia a forma melhor de chegar à baliza adversária: ele agarra na bola, finta toda a equipa alemã e marca golo. Não foi a única experiência do jogador brasileiro no grande ou pequeno ecrã, como lembra o Estadão nesta semana em que o antigo craque do Santos completa 80 anos. Mas foi no campo que Pelé interpretou a sua maior personagem. Nelson Rodrigues foi o primeiro a chamar-lhe “rei”, tinha Pelé apenas 17 anos e o Brasil ainda não ganhara o primeiro título mundial: “Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. (…) O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. (…) Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.”
Mais que um clube
Longe dos holofotes do futebol espectáculo há paixões que se explicam com argumentos que estão para lá das vitórias, como o facto de um clube de Hamburgo, da segunda divisão alemã, ter uma legião de seguidores que extravasa as fronteiras da Alemanha e para quem o clube é muito mais que um clube, usando a frase com que o Barcelona se define, mas que hoje parece mais marketing que identidade. O FC St. Pauli, que nem um título da segunda Bundesliga tem em 110 anos de história, é o centro de um culto mundial que começou a formar-se nos anos 1980 e desde então só tem aumentado. Dois catalães de Barcelona, Carles Viña e Natxo Parra, escreveram um livro para tentar explicar “esse clube como nenhum outro”, cuja tradução para inglês acaba de sair no Reino Unido. Os adeptos dos “piratas da liga” são únicos na sua luta contra todo o tipo de discriminação, na prática de integração de refugiados e na sua luta contra a extrema-direita. O ano passado, o New York Times publicou um artigo onde contava como num obscuro bar de Brooklyn, por baixo da ponte de Williamsburg, um grupo de admiradores se juntava semanalmente para ver em diferido os jogos do St. Pauli, como forma de partilha para lá do resultado e por aí talvez se explique o subtítulo do livro: “Outro futebol é possível”.