O ensino clínico e a pandemia
As aulas clínicas práticas tradicionais, envolvendo um conjunto de estudantes, um/a docente e um/a doente, não serão provavelmente possíveis num futuro próximo. Mas há alternativas possíveis.
Em março de 2020, na sequência de terem sido diagnosticados um número crescente de casos da doença covid-19 no nosso país, o ensino clínico envolvendo doentes foi interrompido, situação que se manteve durante alguns meses. O dever de proteção dos doentes implicava que as administrações hospitalares não permitissem a continuidade da entrada de estudantes nas instalações clínicas nas quais se encontrassem os primeiros, nas condições nas quais tal ocorria anteriormente. No contexto do ensino médico, foram ensaiadas na ocasião outras modalidades de ensino, não presencial, o que permitiu a conclusão do ano letivo. Na verdade, o ensino baseado em tecnologia pode ter um papel importante, mas idealmente não primordial, neste contexto (por exemplo, através do estudo de gravações).
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Em março de 2020, na sequência de terem sido diagnosticados um número crescente de casos da doença covid-19 no nosso país, o ensino clínico envolvendo doentes foi interrompido, situação que se manteve durante alguns meses. O dever de proteção dos doentes implicava que as administrações hospitalares não permitissem a continuidade da entrada de estudantes nas instalações clínicas nas quais se encontrassem os primeiros, nas condições nas quais tal ocorria anteriormente. No contexto do ensino médico, foram ensaiadas na ocasião outras modalidades de ensino, não presencial, o que permitiu a conclusão do ano letivo. Na verdade, o ensino baseado em tecnologia pode ter um papel importante, mas idealmente não primordial, neste contexto (por exemplo, através do estudo de gravações).
A lógica hospitalar ditaria a redução acentuada do número de novos estudantes dos cursos de Medicina, uma vez que resultou muito dificultada a formação desses estudantes, em virtude da pandemia. A política de ensino, contudo, ditou exatamente o contrário – tendo sido oferecida a possibilidade de aumentar o número de estudantes no primeiro ano dos cursos. Importaria talvez que existisse um projeto de conjunto, que de alguma forma permitisse equilibrar estes dois interesses legítimos, mas até certo ponto antagónicos.
As aulas clínicas práticas tradicionais, envolvendo um conjunto de estudantes, um/a docente e um/a doente, não serão provavelmente possíveis num futuro próximo. A generosa colaboração no ensino clínico prático, por parte dos doentes portugueses, junto a um conjunto de estudantes reunidos consigo na mesma sala, que se verificou durante décadas, irá encontrar, se não o seu término, pelo menos uma suspensão prolongada, forçada pela pandemia. As aulas clínicas práticas podem continuar a existir, mas em número reduzido por estudante, tendo em conta, por exemplo, a situação de ser apenas admitido um/a estudante na proximidade de um/a doente.
Face a estes constrangimentos, uma alternativa possível consiste em fornecer cursos médicos essencialmente teóricos/tecnológicos. Esta solução seria muito penalizadora para os estudantes e para os doentes a serem tratados no futuro por estes então profissionais, e não será, portanto, de escolher. Teria, contudo, a vantagem de permitir abrir tantos cursos e tantas vagas quantas as que a procura assim ditasse.
Uma outra possível solução, que é defendida neste texto, consiste em integrar os estudantes nas equipas clínicas, inicialmente com estatuto de observadores e, à medida que as suas competências se forem desenvolvendo ao longo dos anos, com uma participação crescente nas atividades clínicas. Seria necessária uma definição do estatuto jurídico dos estudantes neste contexto, de forma a não beliscar, entre outras, a legislação laboral. As tarefas a poderem ser entregues a estudantes poderiam ser de vária ordem, a definir. A aula prática seria substituída por um estágio prático, a ser complementado por outro tipo de aulas, presenciais ou não (tais como aulas teóricas, aulas teórico-práticas, seminários).
Esta última metodologia parece ser aquela que permite mais facilmente tornar compatíveis as duas perspetivas apresentadas em cima – o respeito pela lógica hospitalar, de limitar o contacto estudante/doente, por um lado; a defesa da perspetiva social e política, que indica a necessidade de incrementar a formação de novos médicos. Não será a solução ideal, mas sim a possível no presente contexto.
Parte da atividade letiva poderia, entretanto, ser levada a cabo com a participação de atores/atrizes, sobretudo na apresentação de quadros clínicos mais típicos e suscetíveis de padronização. Também desta forma, um outro conjunto de profissionais poderia encontrar um mercado de trabalho interessante para os próprios.
Considerando a rapidez com que o tempo passa, seria importante garantir a qualidade do ensino médico em Portugal, no novo contexto que continuará a existir, ao que tudo indica, nos tempos mais próximos. Os estudantes de Medicina de hoje são os médicos/as que irão tratar as epidemias de amanhã. Nos seus ombros repousa o desejo e o dever de se preparar para esse efeito.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico