O que faz falta é dar ar à malta
Mas admito que, de há meses para cá, apanhar ar tornou-se realmente um luxo. Enquanto as nossas faces se foram enchendo de máscaras e viseiras, o apanhar ar ia-se tornando tão urgente e necessário para a maioria das pessoas como para um náufrago.
Uma época interessante é aquela em que respirar é um assunto controverso. É o caso da nossa em que, por um lado, se quer impor máscaras em toda a parte, por outro, se acha que essas máscaras são uma sinistra conspiração para promover o consumo individual de dióxido de carbono.
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Uma época interessante é aquela em que respirar é um assunto controverso. É o caso da nossa em que, por um lado, se quer impor máscaras em toda a parte, por outro, se acha que essas máscaras são uma sinistra conspiração para promover o consumo individual de dióxido de carbono.
A nossa sociedade há muito se apercebeu de como respirar é importante para o seu bom funcionamento. Desde os conselhos para se “respirar fundo” como primeira solução para qualquer problema real ou imaginário, ou de “apanhar ar” como último recurso para não resolver nem um nem outro.
Vão-me desculpar a picuinhice, mas esta última expressão sempre me causou estranheza. Afinal, não só o ar não se costuma deixar apanhar como até tem o desagradável hábito de se infiltrar por todas as fendas que surjam, seja em casas, carros e corpos, tornando a imperiosa frase de “vou apanhar ar” numa impossibilidade física.
Mas admito que, de há meses para cá, apanhar ar tornou-se realmente um luxo. Enquanto as nossas faces se foram enchendo de máscaras e viseiras, o apanhar ar ia-se tornando tão urgente e necessário para a maioria das pessoas como para um náufrago. Eu próprio, militante entusiasta de espaços fechados, vi-me subitamente a apreciar esplanadas, jardins e passeios só para sentir o ar vivo a trotar-me pelos lábios e a cavalgar heroicamente pelas narinas, para me salvar a boca, o nariz, os pulmões, os medos e as memórias.
Sim, os medos e as memórias. São muitos os estudos científicos que mostram como o ar é fundamental para o bom funcionamento das amígdalas e do hipocampo. As amígdalas são duas amêndoas de neurónios, no centro de cada hemisfério cerebral, responsáveis pelos nossos comportamentos emocionais e sexuais. São as amígdalas que reagem aos estímulos exteriores, dizendo-nos se determinada pessoa nos causa medo ou desejo, ou ambos, e fixam a memória desse encontro no curto prazo.
O hipocampo tem a forma de dois amendoins, próximos das amígdalas e a estas ligados, onde se depositam as memórias duradouras, que permitem recordar não só aquilo que um dia desejámos ou receámos, mas também o lugar onde as coisas importantes acontecem.
Ter lesões na amígdala causa apatia, depressão, incapacidade de desejar ou recear o que quer que seja. Já os danos no hipocampo levam-nos a sentir que vivemos num mundo estranho, onde nada faz sentido e tudo passa sem deixar qualquer marca. E estes sistemas neuronais vivem do ar como nós vivemos do pão.
Saber tudo isto fez-me perguntar se a minha vida agora será definida pelo vírus ou pela falta de ar, e até que ponto que o receio que agora se entranhou em todos os sítios e em tantas mentes é fruto apenas das máscaras ou também do ar que estas bloqueiam. Talvez isso explique o medo vago que impera e o crescimento das teorias da conspiração, ou talvez explique simplesmente porque é que o mundo parece fazer tão pouco sentido nos dias que passam.
Entre a incerteza de uma e outra coisa, sim, é melhor usar a máscara em todos os momentos possíveis. Mas também lutar por respirar, por apanhar todo o ar que se possa, com sofreguidão e desejo, mordendo o oxigénio em cada esquina, janela ou momento de solidão, como se este fosse o gesto mais subversivo dos nossos dias, aquele que pode ainda salvar a lembrança de quem somos e do que queremos.