“O que aconteceu nos lares é um processo cumulativo de negligência na articulação entre a Saúde e a Segurança Social”
Conferência Da Pandemia à Inclusão decorre durante todo o dia, esta terça-feira, no ISCTE, em Lisboa e na página do Facebook da APRe!, promotora do encontro.
Com a etapa matinal da conferência Da Pandemia à Inclusão, promovida pela APRe! - Associação Aposentados, Pensionistas e Reformados já na sua recta final, os participantes no auditório do ISCTE, em Lisboa, queriam ouvir o que o antigo director-geral da Saúde, Constantino Sakellarides, tinha a dizer sobre a forma como os lares reagiram à pandemia e como muitos dos seus utentes não resistiram à doença. O especialista em Saúde Pública resistiu a centrar a conversa nesses espaços, mas, ao salientar a importância da existência de planos de contingência nestes e noutros locais, afirmou: “A questão dos lares não é de hoje. É um processo cumulativo de negligência em relação à articulação entre a Saúde e a Segurança Social que nunca aconteceu e que é difícil de acontecer agora.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Com a etapa matinal da conferência Da Pandemia à Inclusão, promovida pela APRe! - Associação Aposentados, Pensionistas e Reformados já na sua recta final, os participantes no auditório do ISCTE, em Lisboa, queriam ouvir o que o antigo director-geral da Saúde, Constantino Sakellarides, tinha a dizer sobre a forma como os lares reagiram à pandemia e como muitos dos seus utentes não resistiram à doença. O especialista em Saúde Pública resistiu a centrar a conversa nesses espaços, mas, ao salientar a importância da existência de planos de contingência nestes e noutros locais, afirmou: “A questão dos lares não é de hoje. É um processo cumulativo de negligência em relação à articulação entre a Saúde e a Segurança Social que nunca aconteceu e que é difícil de acontecer agora.”
O especialista partilhava um painel com o médico Sobrinho Simões, no qual expôs muitas das ideias que já defendera em entrevista ao PÚBLICO, esta segunda-feira, e onde o desconhecimento ainda existente em torno da covid-19 esteve sempre no centro de tudo. Por isso, o momento que vivemos é mais de aguentar do que outra coisa, disse: “Na fase actual, o principal desafio não é resolver o problema, é ganhar tempo até à vacina.”
E esta espera tem de ser feita sempre em busca do equilíbrio entre nos protegermos e vivermos, salientou Constantino Sakellarides, lembrando que para decidir a melhor forma de o fazermos há que contar com conhecimento, seja com uma maior consciência individual, uma maior consciência do mundo (mundividência) e através do desenvolvimento de uma inteligência colaborativa, que depende muito da confiança que temos no outro - algo que não existe muito em Portugal, referiu.
O problema é que o conhecimento existente é pouco, salientou, e mesmo metodologias que deviam estar mais do que oleadas e prontas a ser postas em acção, como os planos de contingência, não existiam quando a pandemia chegou ou, se existiam, não eram adequados, mantendo-se no desconhecimento para muitos dos que os deviam conhecer. Questionado pela moderadora Maria Flor Pedroso sobre que resposta daria, caso fosse ainda director-geral de Saúde, aos utentes “presos em lares há sete meses”, Constantino Sakellarides foi conciso: “Ou temos instrumentos para decidir as coisas ou não sabemos o que estamos a fazer. E, de facto, o instrumento técnico de uma escola ou um lar é ter um plano de contingência.”
A pandemia deixou claro que esse instrumento era inexistente ou deficitário em muitos casos. “Acumulamos um conjunto de problemas que nunca quisemos tocar e que agora foram destapados de forma brutal”, disse o médico jubilado, em referência ao tal “processo cumulativo de negligência” já referido.
Mas Constantino Sakellarides não ofereceu aos presentes, como estes esperavam, uma solução automática para a forma como os mais velhos, e sobretudo os que estão institucionalizados, têm sido obrigados a viver uma vida isolada dos seus familiares, com todas as consequências ao nível do bem-estar e da saúde mental associados a esta realidade. “Não há uma solução, só aprendizagem. E por que é que os poderes aprendem com dificuldade? Por quatro grandes razões. Uma certa sobranceria; porque aprender para um político não é sempre bom, porque tem de mudar e mudar no jogo político é castigo; porque governar é muito difícil e só se pode sobreviver com grande convicção, que é inimiga da dúvida; e por uma quarta e muito séria razão: temos múltiplas competências funcionais, mas paupérrimas estruturais, não temos uma segunda linha que pense o país à distância. Um poder que só tem uma primeira linha de combate imediata não consegue aprender”, disse.
A receita que tinha para oferecer era, por isso, “aprender continuamente” e, para isso - e voltamos ao princípio - é preciso ter acesso a informação. E aqui entra Sobrinho Simões, sempre solidário com tudo o que o colega de painel disse, e a salientar também a falta de informação necessária a uma maior percepção da realidade e à busca de soluções. “Não temos confiança nos outros porque sabemos muito pouco e, em parte, isso acontece porque dizemos burrices sem que isto tenha a vigilância activa por parte da mediação”, disse.
Em termos muito práticos, o patologista deixou um exemplo: as autópsias a pessoas que morreram com covid-19 estão centradas no Hospital de S. João, no Porto, e têm-lhe passado pelas mãos, mas, desde o início da pandemia, foram realizadas apenas três, já que nos restantes casos não houve dúvidas ou questões que obrigassem a este procedimento.
Ora, os casos que lhe passaram pelas mãos apresentaram condições muito distintas entre si, havendo alguns com “comportamento inflamatório muito grande” e outros “sem doença inflamatória”. Por que é que isto acontece? “Há muita coisa que a gente não sabe. Desconhecemos imenso sobre esta doença que pode ser terrível”, disse.
A conferência da APRe! continua esta tarde e conta com uma intervenção gravada do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Durante a manhã, também o filósofo José Gil não esteve presente, enviando uma reflexão escrita, lida por Maria Flor Pedroso, e na qual defendia que a sociedade necessita urgentemente de olhar os seus velhos de forma distinta da de hoje: a de seres sem valor por não serem importantes em termos de produtividade, defendeu. Na exposição Sobre os Velhos e a Velhice, o filósofo defendeu que estes foram particularmente afectados pelas consequências da pandemia, não só pela sua fragilidade, “mas porque não foram suficientemente protegidos, e não foram porque perderam valor económico”, referiu.
No início da conferência, a ministra do Trabalho e da Solidariedade Social, Ana Mendes Godinho, defendeu que se vivem “tempos que ninguém imaginou alguma vez viver” e que estes revelaram a necessidade de “acelerar” a resposta a vários desafios, incluindo os das desigualdades sociais. A ministra prometeu “respostas de qualidade e dignas” para os mais velhos, assentes numa “estratégia transversal e integrando toda a sociedade”, e lembrou algumas verbas disponíveis para isso: 420 milhões de euros destinados a construir modelos que permitam uma maior autonomia, 20 milhões de euros para contratar mais técnicos qualificados para o sector social, além do alargamento a todo o país do programa Radar Social (um projecto-piloto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), que permite identificar pessoas que vivem isoladas ou necessitam de receber apoio em casa.
No encerramento da sessão da manhã, Constantino Sakellarides ainda deixou mais um apelo, relacionado com o que diz ser as “boas práticas” do atendimento médico. O antigo responsável máximo da DGS criticou o facto de, nesta fase de pandemia, muitas consultas estarem a ser feitas por telefone. “Se tenho uma queixa física, eu tenho de ser observado, não posso ser atendido com um telefonema”, defendeu. “Era bom que as ordens profissionais protestassem um pouco menos e trabalhassem mais no sentido de olharem para as boas práticas. Porque se tenho uma queixa e vou falar pelo telefone [com o médico], não é uma boa prática”, disse.