A transição digital e o longo braço do trabalho
Não se pode defender a “transição digital” sem assumir também a irracionalidade económica e, sobretudo, os problemas sociais que tal pode induzir no estado actual das nossas economias e comunidades.
Todos os dias ouvimos proclamar a “transição digital”. E, mais ou menos associado, o anúncio (ou pelo menos prenúncio) do “fim do trabalho”.
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Todos os dias ouvimos proclamar a “transição digital”. E, mais ou menos associado, o anúncio (ou pelo menos prenúncio) do “fim do trabalho”.
A progressiva informatização, automação, robotização, a “inteligência” artificial (recuso-me a escrever esta palavra sem colocar aspas na anterior), dizem, vai acabar com o trabalho. Em resumo, o que por aí não falta é quem (re)escreva “trabalhos” subentendendo o “fim do trabalho” na “transição” do trabalho: do humano para o “digital”.
“(…) a nova onda de tecnologias digitais pode provocar transformações dez vezes mais rápidas que a revolução industrial e a uma escala trezentas vezes maior. Isto vai afetar o mundo da energia e do trabalho, as empresas, o funcionamento das sociedades e vai condicionar o futuro. Um dos aspetos relevantes é a Robótica. Temos hoje a Robótica avançada, com robots que entendem frases complexas, respondem e fazem formulações complexas (…)”, escreve o professor António Costa Silva no documento apresentado ao Governo como “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”.
.”(…) Na era da quarta revolução industrial, caracterizada pela digitalização exponencial da sociedade e da economia, a transição digital assume também inegável importância enquanto um dos instrumentos essenciais da estratégia de desenvolvimento do país, em linha com as orientações da Comissão na Comunicação sobre a Construção do Futuro Digital da Europa (COM(2020) 67 final, de 19 de fevereiro), do Pacto Ecológico Europeu e com os investimentos da União Europeia no período de programação 2021-2027.(…)”, escreve o Governo na versão preliminar (já apresentado à União Europeia) do Plano de Reestruturação e Resiliência 2021 – 2026.
Sabe-se, também, que um dos critérios de avaliação da aplicação do financiamento europeu já negociado no contexto e relacionado com o combate à pandemia, a tal bazooka, será, justamente, o investimento na “transição digital”.
Não se duvida da potencialidade económica e social, política (até ministro dela já temos) da “transição digital”. Mas, seguindo o conselho de Alexandre O'Neill implícito num dos seus poemas (“A leitura - brechtiana”), talvez seja sensato perguntar a cada letra desses escritos: “Por que está aqui?”
O que é que (nos) propõe a “transição digital”? A diminuição da duração, da intensidade, da penosidade, da insalubridade, da perigosidade, da falta de dignidade de muito trabalho humano? Ou, directa ou indirectamente, imediata ou diferidamente, a desvalorização, a negação objectiva do trabalho humano, para lhe baixar (ainda) mais o “preço” no “mercado de(o) trabalho"? “Transição digital”? “Fim do trabalho"?
Invisível na caixa negra dos locais de trabalho, muito, muito trabalho humano por aí anda, cada vez mais. Algum, ainda que sob a capa da “evolução tecnológica” e do “digital” da quarta revolução industrial, de facto, no essencial, nada tendo “transitado” para melhor (nalguns casos e dimensões, objectivamente, pelo contrário, “transitou” até para pior) das condições (nomeadamente de sobre-intensificação e alienação) em que era realizado há mais de 100 anos, na primeira revolução industrial.
“Fim do trabalho"? Não. Mais trabalho: “voluntário”, “eventual”, “à experiência”, por e-mail, por telemóvel, em casa, no restaurante, sobre “plataformas”, algoritmado, sobre-intensificado em duração e em ritmo (em que quem trabalha, em oito horas visíveis, mete “no corpo” (e na mente) o sobre-esforço de carga física e mental de 16 ou 24 invisíveis...), dissimulado, subdeclarado, clandestino. Tudo isso e mais alguma coisa mas, ... (mais) trabalho, trabalho humano, em regra, por conta (e interesse) de outrem.
Porque antes, agora e sempre, trabalho é “apenas” aquilo que as máquinas, os computadores e os algoritmos não podem nunca poderão fazer. Consubstancia-se nas pessoas que o realizam.
Nesse sentido, não se pode defender economicamente, institucionalmente, governamentalmente, enfim, politicamente, a “transição digital” e, certamente associadas, a automatização e a robotização aceleradas, sem assumir também a irracionalidade económica e, sobretudo, os problemas sociais que tal pode induzir no estado actual das nossas economias e comunidades.
E concretamente no domínio do Trabalho, com as decorrentes consequências não apenas nos locais de trabalho (quanto a condições de trabalho, especificando, condições de remuneração, de organização e duração dos tempos de trabalho, de segurança, de saúde, de dignidade) mas, por aí, também (se não sobretudo), na família e na sociedade.
Sim, porque, dada a sua inquestionável centralidade social, parafraseando Yves Clot, “o trabalho tem um braço longo”.