Dia da Consciência Intersexo: da patologização e da invisibilidade ao reconhecimento dos direitos humanos
Estima-se que 1,7% da população mundial seja intersexo. Falamos, pois, de uma realidade que abrange, aproximadamente, 133 milhões de pessoas.
Hoje é o Dia da Consciência Intersexo. A data assinala aquela que terá sido a primeira manifestação pelos direitos das pessoas intersexo. Estamos em 1996, em Boston, e os membros ativistas da Intersex Society of North America protestam no local onde ocorre a conferência anual da American Academy of Pedriatics. A principal reivindicação: acabar com a medicalização e patologização dos corpos intersexo e, assim, com os tratamentos e as cirurgias “de normalização” (ou mutilação genital, para lhe dar outro nome), realizados nas pessoas, sobretudo, crianças, intersexo, sem consentimento livre e informado.
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Hoje é o Dia da Consciência Intersexo. A data assinala aquela que terá sido a primeira manifestação pelos direitos das pessoas intersexo. Estamos em 1996, em Boston, e os membros ativistas da Intersex Society of North America protestam no local onde ocorre a conferência anual da American Academy of Pedriatics. A principal reivindicação: acabar com a medicalização e patologização dos corpos intersexo e, assim, com os tratamentos e as cirurgias “de normalização” (ou mutilação genital, para lhe dar outro nome), realizados nas pessoas, sobretudo, crianças, intersexo, sem consentimento livre e informado.
Vamos “pôr o ponto no i”. As pessoas intersexo nascem com características sexuais (genitália, anatomias sexuais e reprodutivas, cromossomas, hormonas, outras aparências emergentes da puberdade) que não se enquadram na categorização binária das características sexuais femininas e masculinas. Não se confunde características sexuais, com identidade de género, expressão de género e orientação sexual, como bem destrinçado pelos Princípios de Yogyakarta Mais 10. Estima-se que 1,7% da população mundial seja intersexo. Falamos, pois, de uma realidade que abrange, aproximadamente, 133 milhões de pessoas.
Estamos em 2020 e, volvidos 24 anos, ou 16 se atendermos à primeira celebração deste dia de consciencialização, aquelas palavras de ordem mantêm-se. São ainda necessárias, porquanto as intervenções médicas de normalização continuam a ser práticas correntes e generalizadas, demonstrando-se mais nocivas que benéficas. Mas não são únicas, pois as pessoas intersexo continuam invisíveis e a sofrer estigmatização, violência, assédio e discriminação, mesmo naqueles (poucos) Estados que passaram a proibir aquelas práticas médicas não consentidas.
Veja-se que, em Portugal, a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, é comummente designada como a Lei da Identidade de Género, quando, além de estabelecer o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, vem também reconhecer o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa (artigos 1.º e 4.º), proibindo as modificações do corpo e das características sexuais da pessoa menor intersexo (artigo 5.º) – consagração esta que valeu a Portugal um lugar na linha da frente, ao nível da União Europeia, juntando-se a Malta.
Mas a corrida não se basta com esta medalha – que o diga Caster Semenya, atleta cujos triunfos lhe valeram o escrutínio público do seu corpo e da sua intimidade, sendo impedida de competir internacionalmente, a menos que inflija no corpo medicação que reduza o seu natural elevado nível de testosterona (decisão confirmada, no mês passado, pelo Tribunal Federal suíço). O fim da meta, para Portugal, ainda está para vir. É necessário criar estruturas de apoio e espaços seguros e inclusivos, na escola, nas atividades lúdicas, no emprego, sensibilizar e (in)formar educadores e profissionais de saúde, reeducar a comunidade sobre as conceções de corpo e as categorizações de sexo/género.
Se este último referencial se mantiver nos documentos legais de identificação, deve incluir-se uma terceira categoria de género (como fizeram os legisladores alemão – depois do ultimato do Tribunal Constitucional – austríaco e grego). É preciso dar voz às pessoas intersexo, ouvi-las na primeira pessoa e inclui-las nos espaços de decisão. Estas são pretensões sinalizadas pela comunidade intersexo e organizações defensoras dos seus direitos (2013 Malta Declaration, 2014 Statement of Riga, 2017 Vienna Statement) e reiteradas por Resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (2017), Resolução do Parlamento Europeu da União Europeia (2019) e pela campanha Free&Equal do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Organização das Nações Unidas.
Hoje, ainda é o dia da consciência intersexo.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico