StayAway Trust
O desenvolvimento de novas tecnologias, de uso alargado e com potenciais impactos na sociedade, merece ser debatido com diferentes actores sociais na procura de soluções que melhor resposta poderão dar aos objetivos propostos e que minimizem os potenciais impactos negativos.
0. “É possível uma aplicação de rastreamento de contactos ter sucessso?” Foi esta a questão colocada em agosto pela revista MIT Technology Review, perante os resultados conhecidos deste tipo de aplicações. Esta dúvida contrasta com a expectativa desadequadamente elevada que o primeiro-ministro colocou sobre a aplicação portuguesa de rastreamento StayAway Covid, ao propor a obrigatoriedade do seu uso. Quando se constata o limitado impacto deste tipo de aplicações, é importante analisar o que nos trouxe até aqui.
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0. “É possível uma aplicação de rastreamento de contactos ter sucessso?” Foi esta a questão colocada em agosto pela revista MIT Technology Review, perante os resultados conhecidos deste tipo de aplicações. Esta dúvida contrasta com a expectativa desadequadamente elevada que o primeiro-ministro colocou sobre a aplicação portuguesa de rastreamento StayAway Covid, ao propor a obrigatoriedade do seu uso. Quando se constata o limitado impacto deste tipo de aplicações, é importante analisar o que nos trouxe até aqui.
1. Um bom início é revermos a resposta dada pelo INESC-TEC, Laboratório Associado que tem vindo a coordenar o desenvolvimento da aplicação, à surpresa demonstrada por Rui Rio pelo facto de não ter sido informado pela aplicação após um conhecido contacto de risco: “A Stayaway Covid alerta-o apenas se a pessoa infetada 1) tinha a aplicação ativa, 2) esteve a menos de 2 metros de si por mais de 15 minutos, 3) tiver recebido do médico um código aquando o diagnóstico positivo e 4) tiver inserido esse código na aplicação”. Face a estas quatro condições, a obrigatoriedade proposta apenas incidiria sobre a primeira – ter ou não ter a aplicação –, mesmo assim não garantindo que a aplicação esteja ativa, podendo ter a comunicação por bluetooth desligada. A segunda condição, definindo uma abordagem de rastreamento complementar aos procedimentos de saúde pública, fará menos sentido em contexto laboral, onde se pretende implementar a obrigatoriedade, já que existe aqui maior facilidade em realizarmos esse rastreamento de contactos do que em locais públicos, como em transportes ou restaurantes, onde os contactos próximos são desconhecidos. Querendo garantir melhores resultados, talvez fosse no processo de emissão dos códigos – a terceira condição – que a intervenção do Governo tivesse maior eficácia, estando este processo nas mãos do Estado. Com apenas 2% de códigos atribuídos até agora, não há obrigatoriedade de uso que compense. A inserção dos códigos atribuídos – a quarta condição –, da qual resulta a notificação dos contactos, ocorreu apenas em cerca de um terço desses casos, não estando também garantida pela obrigatoriedade de uso. Mas é precisamente esta base voluntária que é central a toda a aplicação.
2. Na verdade, a decisão do Governo colide com os dois princípios que nortearam o desenvolvimento da aplicação desde o início: o modelo privacy by design e a base voluntária em cada passo da utilização. Estas opções estão em linha com os princípios éticos para este tipo de aplicações, analisados pelo eticista Luciano Floridi e colegas na revista Nature: a necessidade, a proporcionalidade, a validade científica e a limitação temporal. Face aos diferentes modelos de aplicações de rastreamento da covid-19 em todo o mundo, as opções tomadas pela equipa coordenada pelo INESC-TEC decorreram desse conjunto de preocupações e de escolhas com vista a potenciar a sua adopção alargada, focando simplesmente na função de notificação. Por exemplo, optou-se por seguir o modelo descentralizado de registo dos dados, com maiores garantias de privacidade, em detrimento de um maior conhecimento das cadeias de contágio que o modelo centralizado possibilitaria. Deu-se assim prioridade à confiança dos cidadãos face ao interesse do ponto de vista epidemiológico. Como indicava o artigo da MIT Technology Review: “Se as pessoas não confiarem na aplicação, é inútil.” António Costa provocou um abanão nesse processo.
3. É, de resto, de estranhar, numa decisão que procura impor o uso da aplicação no contexto laboral, que não sejam envolvidos os parceiros sociais. Numa análise ao uso destas aplicações no contexto laboral, o European Trade Union Institute alerta precisamente para a necessidade de se obter o consentimento dos trabalhadores e o envolvimento dos sindicatos. O mesmo orgão alerta também para o risco destas aplicações abrirem caminho a uma cultura de hipervigilância no trabalho. É este o risco do ‘plano inclinado’ que deve ser considerado: deslizar progressivamente para práticas não desejadas, sem consentimento dos interessados e cujo caminho vamos percorrendo sem nos apercebermos.
4. Numa altura em que a tecnologia digital toma um peso tão significativo nas sociedades contemporâneas e no mundo do trabalho, torna-se cada vez mais premente a sua interrogação e a aferição dos seus impactos positivos e negativos. Tal como este caso veio demonstrar, o desenvolvimento de novas tecnologias, de uso alargado e com potenciais impactos na sociedade, merece ser debatido com diferentes actores sociais na procura de soluções que melhor resposta poderão dar aos objetivos propostos e que minimizem os potenciais impactos negativos. As metodologias de avaliação participativa de tecnologias são, há muito, adoptadas em vários países, nomeadamente em apoio ao trabalho parlamentar. A StayAway Covid é um exemplo de uma tecnologia que merece esse debate alargado e não a simples decisão legislativa do seu uso. O sucesso das tecnologias não se conhece de antemão, depende também da confiança que transmitem. A confiança pode-se conquistar mas pode-se perder com facilidade. Diferente é pensar em construí-la colectivamente, e tomar opções partilhadas sobre o nosso futuro.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico