Uma estratégia ineficaz e perigosa
O problema do combate à corrupção não reside na falta de produção legislativa, que o país tem em abundância, mas sim no efectivo investimento na investigação criminal, a única capaz de intervir eficazmente na prevenção e repressão destes crimes.
Terminou recentemente o período de discussão pública da Estratégia Nacional contra a Corrupção (ENCC), em que a Ordem dos Advogados teve ocasião de se pronunciar. As conclusões a que chegámos foram de que a referida estratégia em parte era ineficaz para combater a corrupção e noutra parte se apresentava perigosa para a protecção dos direitos fundamentais.
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Terminou recentemente o período de discussão pública da Estratégia Nacional contra a Corrupção (ENCC), em que a Ordem dos Advogados teve ocasião de se pronunciar. As conclusões a que chegámos foram de que a referida estratégia em parte era ineficaz para combater a corrupção e noutra parte se apresentava perigosa para a protecção dos direitos fundamentais.
Em primeiro lugar, verifica-se que a ENCC pouco difere de anteriores pacotes legislativos anticorrupção, que recorrentemente têm vindo a ser criados, sempre com muito pouca eficácia, uma vez que, apesar dos mesmos, a corrupção e a criminalidade económica e financeira continuaram a aumentar em Portugal. A sensação que deixa esta proposta é a de que se estará apenas perante mais um pacote legislativo, com muito pouca eficácia. O problema do combate à corrupção não reside na falta de produção legislativa, que o país tem em abundância, mas sim no efectivo investimento na investigação criminal, a única capaz de intervir eficazmente na prevenção e repressão destes crimes.
Salienta-se que a ENCC, ao contrário do que tinha sido o anúncio inicial do Governo, se abstém de tomar medidas relativamente à transparência das contas e do financiamento dos partidos políticos. Por outro lado, é do conhecimento público que a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, que funciona junto do Tribunal Constitucional, tem recebido do Estado um financiamento tão reduzido que nem sequer conseguiu analisar as contas anuais dos partidos políticos dos anos de 2010 e 2011, havendo assim risco de prescrição dos respectivos processos contra-ordenacionais. Essa absoluta ausência de controlo dos financiamentos partidários torna ineficaz qualquer estratégia contra a corrupção.
Por outro lado, apesar de a ENCC proclamar a transparência com vista a “reduzir os contextos facilitadores da corrupção”, o que o Estado está a fazer é a caminhar em sentido inverso, como bem avisou o Tribunal de Contas. Basta ver que foram aprovadas sucessivas iniciativas legislativas destinadas a reduzir os poderes de intervenção do Tribunal de Contas, o que era exactamente o inverso do que se deveria fazer.
No âmbito da investigação criminal, perante a ausência de efectivo investimento do Estado nesta área, a ENCC opta por propor em seu lugar medidas altamente lesivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como as buscas digitais, as negociações de penas e a delação premiada. Trata-se de medidas que colocam em causa princípios fundamentais do Estado de direito e que implicam uma verdadeira subversão do nosso processo penal.
Em relação às buscas digitais, as mesmas suscitam grande preocupação à Ordem dos Advogados, uma vez que ultrapassam em muito as escutas telefónicas, em termos de intromissão na vida privada do visado. Na verdade, enquanto nas escutas telefónicas o acesso se limita às conversas efectuadas numa chamada, nas buscas digitais é vasculhada sem justificação toda a vida pessoal do visado. Efectivamente, uma vez que a vida das pessoas decorre hoje em grande parte no ambiente digital, onde tudo pode ficar registado, as autoridades passariam a ter acesso a toda a vida pessoal dos cidadãos, sem que eles sequer se apercebessem dessa devassa. Tal transformaria Portugal num estado de polícia, sem qualquer respeito pela vida íntima das pessoas.
A Ordem dos Advogados é também contra a instituição de qualquer sistema de negociação de penas ou de delação premiada, em que o nosso processo penal se deixaria de basear nos julgamentos para passar a ser um sistema de acordos, como sucede no Direito norte-americano. Tal negociação violaria o princípio da reserva de jurisdição, sendo por isso inconstitucional (arts. 111.º e 202º. da CRP). Acresce que esse sistema nem sequer garante que o principal culpado da corrupção seja efectivamente condenado, bastando-lhe arranjar um bode expiatório que aceitasse confessar o crime. Tal poderia levar a que se apresentasse publicamente uma imagem de eficácia no combate à corrupção, mas não se estaria seguramente a fazer justiça.
É por todos esses motivos que a Ordem dos Advogados entende que a ENCC é, por um lado, ineficaz e, por outro lado, perigosa para o nosso Estado de direito. Deve assim ser reformulada em benefício de um combate efectivo e eficaz à corrupção, o qual passa necessariamente pelo reforço dos meios de investigação criminal.