As mulheres histéricas
A que propósito é que os supermercados britânicos pagam o dobro aos homens que arrumam os legumes do que pagam às mulheres? É uma pena o ano não ter mais dias para falarmos mais sobre igualdade de género.
Já não se aguenta o politicamente correcto e a mania da igualdade de género — ouço isto todos os dias. Há sempre alguém urbano e cosmopolita a dizer “até concordo, mas é um exagero” falar-se de género “todos os dias”.
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Já não se aguenta o politicamente correcto e a mania da igualdade de género — ouço isto todos os dias. Há sempre alguém urbano e cosmopolita a dizer “até concordo, mas é um exagero” falar-se de género “todos os dias”.
Falamos todos os dias dos problemas do mundo — crime, guerras, corrupção, pobreza — e isso é normal. Chegamos à igualdade de género e é uma “histeria”.
Tenho acompanhado a luta das mulheres que trabalham na Next e nos supermercados Asda, Sainsbury’s, Morrisons e Tesco no Reino Unido e pergunto se alguém acha que elas são histéricas.
A Next é um gigante britânico do pronto-a-vestir, ao lado da Marks & Spencer e da irlandesa Primark. Nasceu em 1874 com uma loja em Leeds e hoje tem 700 lojas espalhadas pelo mundo — 500 das quais no Reino Unido e Irlanda. Apesar da pandemia, a empresa espera acabar o ano com um lucro de 300 milhões de libras. “Foi um ano terrível”, disse o administrador, mas o consumo gerado pelas “férias cá dentro” — no caso, lá dentro — ajudou a compor o negócio. Not bad. 300 milhões é pouco comparado com os 728 milhões de lucro de 2019, mas é dinheiro.
A Next e estas quatro cadeias de supermercados enfrentam processos na justiça por causa da mania que hoje as mulheres têm de exigirem receber salários iguais aos dos homens, na lógica de “trabalho igual = salário igual”. O padrão é conhecido: pelo mesmo trabalho, no mesmo supermercado, no mesmo piso, com a mesma função, a mesma responsabilidade e o mesmo horário, as mulheres recebem oito libras por hora e os homens recebem entre dez a 14 libras por hora.
Na Next, a história não é a preto e branco. É mais difícil e mais interessante. A revolução industrial já passou e no século XXI há desigualdades descaradas, mas também subtis. No caso, os empregados da Next que trabalham nas lojas como vendedores descobriam que os colegas que trabalham nos armazéns ganham mais duas a seis libras por hora e não gostaram. Argumentam que o seu trabalho é igualmente exigente e nada justifica a diferença salarial.
A história não é clarividente porque os trabalhos não são iguais. Uma coisa é estar em pé oito horas por dia a atender clientes e a arrumar roupa, outra é estar oito horas por dia a tirar e a pôr caixas de roupa em prateleiras.
O que têm em comum estes trabalhadores da base da cadeia laboral da Next e dos grandes supermercados britânicos? São todos pobres, mas os que ganham menos por hora são sempre as mulheres.
A Next tem 25 mil trabalhadores, a Asda 145 mil, a Tesco 450 mil, a Sainsbury’s 160 mil e a Morrisons 110 mil. Se as mulheres que processaram estas empresas ganharem, abrir-se-á um precedente fortíssimo. Estas lutas dariam uma série da Netflix — a Next foi acusada esta semana de ter destruído documentação relevante para o julgamento, o que pode precipitar uma condenação. Mas talvez estas lutam façam mais do que inspirar produtores de TV.
Um exagero e uma histeria? É uma pena o ano não ter mais dias para podermos falar mais vezes sobre género.