O vinho português em ano covid: e se aproveitássemos para mudar?
Com ou sem confinamentos, a covid-19 vai desaguar numa inevitável retracção do mercado de bens de consumo. Questiono, pois, se não deveríamos aproveitar este momento para fazer algumas mudanças que dotem o vinho, já hoje um sector muito forte, de ainda mais competitividade. Aqui deixo cinco medidas nesta perspectiva reformadora.
O primeiro trimestre correu muito bem. Aliás, “correr muito bem” era o normal.
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O primeiro trimestre correu muito bem. Aliás, “correr muito bem” era o normal.
Entre 2000 e 2019, os vinhos portugueses viveram anos dourados. Jornalistas e concursos internacionais reconheceram e premiaram os nossos vinhos. As exportações cresceram de 600 para mais de 800 milhões de euros e o sector começou a pensar como comemorar os mil milhões quando, mais ano, menos ano, fossem noticiados. As vinhas renovaram-se em todo o País e, com elas, os vinhos. Afirmaram-se castas que ninguém conhecia: já não somos só o País do Arinto e da Touriga Nacional e ouve-se hoje falar do trabalho de regiões que poucos conheciam, mas que, afinal, fazem excelentes vinhos como, por exemplo, a Beira Interior.
Sobre os 45 dias de confinamento, três apontamentos: em primeiro lugar, o confinamento não suspendeu o ciclo natural da vinha. Continuou a ser preciso fazer tratamentos e trabalhos de campo, pelo que nenhum agricultor pôde recorrer ao layoff. Aliás, este ano tratámos mais a vinha, porque a alternância entre chuva e temperatura amena obrigou a investir mais nesses cuidados. Se houver confinamento neste final de 2020, nem por isso se deixará de podar.
De igual modo, o confinamento não suspendeu as vendas. A chave para se perceber o efeito disruptivo da covid-19 no mercado de vinhos é a disparidade. Lado a lado, temos empresas e regiões que aumentaram as vendas e outras que viram o chão desaparecer. Quem tem como mercados fortes a exportação e a grande distribuição nacional teve, em regra, perdas de que já recuperou ou pode até ter crescido. Segundo dados do INE, as exportações de Vinho Verde crescem no fecho de Agosto 6% para 50,8M€, sem degradação de preços, e o presidente da ViniPortugal, Frederico Falcão, aponta para um crescimento das exportações portuguesas de 2,5% no fecho do ano.
Mercados como os do Norte da Europa, a Alemanha o os mercados norte-americano e canadiano estiveram activos. O mercado brasileiro sofreu sobretudo com a significativa desvalorização da moeda local. Em sentido oposto, os produtores mais pequenos que têm como canais a restauração, as garrafeiras nacionais e algum mercado externo, sofreram imenso. A restauração é uma porta giratória de dezenas de sectores a montante. Quando os restaurantes fecham, são dezenas de sectores que ficam sem ar. Os espumantes e o Porto estão entre os que tiveram um ano mais difícil.
Uma última nota ainda sobre os efeitos covid: o Governo implementou duas medidas de intervenção no mercado – um subsídio à armazenagem, para dar tesouraria aos produtores com muito vinho em stock – e uma destilação, operação que retira vinho do mercado, transformando-o em álcool para fins industriais. A última, que era paga em valores generosos, não esgotou o orçamento previsto. Não há, portanto, um desequilíbrio significativo do mercado de granel. O facto de a vindima ter sido curta evita ainda que haja uma degradação de preços.
A verdade, porém, é que a covid, com ou sem confinamentos, apps e máscaras, vai desaguar numa inevitável retracção do mercado de bens de consumo. Questiono, pois, se não deveríamos aproveitar este momento para fazer algumas mudanças que dotem o vinho, já hoje um sector muito forte, de uma competitividade que lhe permita voltar a sonhar com os tais mil milhões de euros de exportações, tão breve quanto possível. Aqui deixo cinco medidas nesta perspectiva reformadora.
Reduzir o apoio por hectare do programa Vitis e apoiar mais projectos – apoiando a renovação da vinha, o Vitis é um exemplo de sucesso pela sua simplicidade e pelo efeito reformador que tem no sector. É o programa mais generoso dos seus congéneres europeus, cobrindo a fundo perdido 70% do investimento numa nova vinha. É preferível financiar numa percentagem menor, apoiar mais candidatos e favorecer o aumento da área média de exploração, um problema endémico do País. Não se justifica excluir grandes investimentos nem prejudicar os produtores mais velhos, quanto mais não seja para lhes poupar o trabalho de ter de apresentar projectos em nome dos filhos.
A cobertura do País vitícola por seguros de colheitas é urgente. Não faz sentido que, perante uma mesma geada ou granizo, alguns produtores chamem o perito de seguro para serem ressarcidos e outros clamem por apoios que acabam por nunca chegar. Atribuir culpas não interessa, sequer. O que não faz sentido é que a União Europeia financie seguros de colheita a 80% e só uma região esteja totalmente coberta, beneficiando deste apoio.
Se alguém fizer o levantamento da capacidade de engarrafamento que existe em Portugal, rapidamente concluirá que, a funcionar num só turno em dias úteis, o País pode engarrafar várias vezes aquilo que produz. Temos equipamento da mais recente tecnologia. Recorre-se pouquíssimo a centrais de engarrafamento e a linhas de engarrafamento móveis. Umas e outras, sim, justificariam investimento. Uma área onde o financiamento público deve ser mais leve e selectivo.
Não há gente para o trabalho de campo e menos haverá no futuro. Há que investir na mecanização agrícola, o que também deve ser feito tendo em conta índices de utilização. Justifica-se alocar fundos nesta área. Por outro lado, a gestão da água e a estratégia ambiental em geral são incontornáveis. Empresas, entidades certificadoras e a ViniPortugal têm de se entender para darem respostas rápidas e economicamente razoáveis, que o cliente internacional exige.
O enoturismo, o turismo do interior, do campo, da natureza está a crescer e mais crescerá no período pós-covid. Impulsiona toda a economia em seu redor, sempre em zonas de baixa densidade. Aqui sim, temos de investir e sem os erros do passado: é preciso oferta de qualidade, concepção do produto e a sua comercialização. Não necessariamente betão. E poupem-nos, por favor, ao argumento de que o turismo degrada e polui o interior. A ViniPortugal e as entidades certificadoras têm aqui um importante papel, em articulação com entidades de turismo e municípios. Portugal tem de ser cada vez mais promovido como um destino de ar puro, de paisagens limpas, de gastronomia e de vinhos de qualidade. E há tanto mercado para esta mensagem.
Também nas entidades certificadoras há oportunidades de melhorar. Vinhos de diferentes regiões devem ter regras de certificação e rotulagem tão uniformes quanto possível e o mais simples que o quadro comunitário o permita. E fará sentido haver cinco laboratórios de certificação no continente, quando sabemos que o modelo de negócio dos laboratórios deste tipo é de custos praticamente fixos? E o Douro, não seria de poder beneficiar de mecanismos de gestão mais céleres? Para fechar um contrato de publicidade nos Vinhos Verdes ou no Alentejo basta um e-mail. O Douro tem de percorrer o calvário da contratação púbica.
Por último, a alocação de taxas. As taxas que os produtores pagam devem corresponder a serviços de certificação e promoção que lhes são efectivamente prestados e não levadas por cativações do Ministério das Finanças, aos orçamentos do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) e do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP). Se estes institutos têm resultados positivos, ou os investem no sector, ou reduzem o valor das taxas cobradas.
O vinho português contribui todos os dias para gerar emprego e valor exportador a partir do interior do País. No continente, na Madeira e nos Açores. Fixa populações e acarinha o ambiente. Sendo um ano tremendo, ao menos que 2020 nos sirva para afinarmos o rumo e sairmos em força já em 2021. Boas provas e beba com moderação!