O esvaziamento dos direitos humanos
Torna-se imperioso travar este processo de retrocesso civilizacional. Os passos dados que levaram à construção dum modelo de sociedade de base humanista não podem ser anulados por interesses e circunstâncias de ocasião.
A segunda metade do século XX foi prodigiosa em avanços civilizacionais que estão consagrados em vários referenciais jurídicos internacionais. Com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de Dezembro de 1948, a comunidade internacional assumiu o compromisso de dotar o Mundo com a segurança da observância de requisitos básicos a uma vida digna para todas as pessoas, evoluindo, de forma significativa, relativamente às iniciativas humanistas até então desenvolvidas, nos séculos precedentes, de caráter regional ou local.
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A segunda metade do século XX foi prodigiosa em avanços civilizacionais que estão consagrados em vários referenciais jurídicos internacionais. Com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de Dezembro de 1948, a comunidade internacional assumiu o compromisso de dotar o Mundo com a segurança da observância de requisitos básicos a uma vida digna para todas as pessoas, evoluindo, de forma significativa, relativamente às iniciativas humanistas até então desenvolvidas, nos séculos precedentes, de caráter regional ou local.
Após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos gerou-se uma dinâmica de aprofundamento dos direitos nela constantes, assistindo-se ao nascimento de múltiplos tratados, convenções, protocolos, regras e normas, que pormenorizaram e alargaram os ideais consagrados nesse grande referencial. Disso é exemplo o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção dos Direitos da Criança e mais de uma centena de diversos diplomas relacionados com os direitos humanos, tendo como linha comum o seu caráter de valor igual, universal, indivisível e interdependente, consagrando que todos os direitos consignados têm de ser respeitados sem pôr em causa qualquer dos outros direitos constantes dos referenciais de direitos humanos universalmente consagrados.
Todo este arsenal humanista tem vindo a ser corroído, neste início do século XXI, quer pela imposição de retrocessos no ordenamento jurídico que já contemplava os avanços conquistados, nomeadamente no mundo ocidental, incluindo Portugal, quer impedindo a sua implementação em Estados que ainda não eram Estados-Parte dos referenciais internacionais. (Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração. Mas a história dá sinais de regressão. – Fratelli Tutti – Papa Francisco.)
Como exemplos, tem-se assistido, a pretexto de razões de segurança, de saúde pública e outras, à introdução na vida da sociedade de quadros legais contraditórios com os compromissos jurídicos assumidos ao ratificarem-se normativos internacionais, pondo em causa a liberdade de reunião, de circulação, de expressão e, até, da prática da solidariedade para com pessoas acusadas de infracções ao quadro legal criado, ao arrepio do disposto nesses normativos de carácter vinculativo, impondo obrigações, condicionamentos e proibições que infringem direitos de valor jurídico superior. (Estamos cegos. Cegos que vêem. Cegos que vendo não vêem. – Ensaio sobre a Cegueira –José Saramago.)
É obrigatório ter em conta que o artigo 4.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos só admite a derrogação de alguns direitos “Em tempo de uma emergência pública que ameaça a existência da nação…” e o n.º 2 do artigo 5.º estipula que “Não pode ser admitida nenhuma restrição ou derrogação aos direitos fundamentais do homem reconhecidos ou em vigor em todo o Estado-Parte no presente Pacto em aplicação de leis, de convenções, de regulamentos ou de costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconhece ou reconhece-os em menor grau”.
O modelo político-económico-social que está, sorrateiramente, a ser implementado parece querer subverter as obrigações internacionalmente assumidas, sendo, cada vez mais, assente na proibição, repressão, obrigação e punição, com o assumir de “acções musculadas” como método repressivo, culminando com o elevado número da população prisional que é disso exemplo, sendo as prisões instituições desumanas, arcaicas, medievais, medonhas e violentas, indignas duma sociedade civilizada que respeite os direitos humanos. (Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação. – Fratelli Tutti – Papa Francisco.)
Torna-se imperioso travar este processo de retrocesso civilizacional. Os passos dados que levaram à construção dum modelo de sociedade de base humanista não podem ser anulados por interesses e circunstâncias de ocasião. Impõe-se que os governantes, no exercício dos poderes nacionais e internacionais, deixem de desrespeitar o legado construído por alguns de nós, pelos nossos pais e avós. De acordo com a Convenção de Viena de 1993 da ONU, os direitos humanos universalmente consagrados são iguais, universais, indivisíveis, interrelacionados e interdependentes. Logo, não se pode defender um dos direitos à custa da violação de qualquer outro. E não devemos esquecer que diferentes tipos de fascismo foram, gradualmente, implantados, em vários países do mundo, sempre com “boas” intenções e para o interesse do povo.
Não basta falar em direitos humanos, não faz sentido proclamar a sua observância suspendendo-os e punindo quem os pratica, sendo necessário um empenhamento efectivo na sua defesa, promoção e aprofundamento.