Porque continua a ser um erro insistir no encerramento de Coimbra-A em 2020
A falta de consenso foi agravada pela bipolarização da discussão. De um lado, os que só aceitam uma solução ferroviária integral; do outro, os que acham que apenas com metro-bus é possível concretizar o projecto inicial. O primeiro passo para ultrapassar o problema é abandonar esta insistente visão dicotómica.
No final do ano passado, foi aprovado o encerramento da estação central de Coimbra, uma decisão já extemporânea naquela altura e que faz cada vez menos sentido no presente. No entanto, a remoção dos carris só está apontada para 2022, o que nos dá tempo para conjugar o serviço ferroviário de Coimbra-A com o projecto do metro-bus, desde que adoptemos uma visão conciliatória. É que a cada dia que passa vamos conhecendo novos dados que confirmam que as previsões do artigo anterior não só não estavam erradas, como algumas foram até amplificadas pelos efeitos da pandemia.
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No final do ano passado, foi aprovado o encerramento da estação central de Coimbra, uma decisão já extemporânea naquela altura e que faz cada vez menos sentido no presente. No entanto, a remoção dos carris só está apontada para 2022, o que nos dá tempo para conjugar o serviço ferroviário de Coimbra-A com o projecto do metro-bus, desde que adoptemos uma visão conciliatória. É que a cada dia que passa vamos conhecendo novos dados que confirmam que as previsões do artigo anterior não só não estavam erradas, como algumas foram até amplificadas pelos efeitos da pandemia.
A França deu início ao que em breve será a realidade europeia: a substituição gradual do transporte aéreo por uma alternativa mais ecológica. Os voos internos franceses serão eliminados sempre que exista uma alternativa ferroviária inferior a 2h30. Os investimentos multiplicam-se nos países da União Europeia, desde a Holanda à Alemanha, com o objectivo de duplicar o número de passageiros até 2030. A UE já percebeu que o comboio é mesmo o transporte do futuro, o único que tem a capacidade de transportar um grande volume de passageiros de uma forma sustentável. Por isso é que o investimento em ferrovia é largamente financiado e que o próximo ano de 2021 será o Ano Europeu da Ferrovia — curiosamente o mesmo em que Portugal partilha a presidência do Conselho Europeu.
Também em Portugal se notaram alterações. A variação do número de passageiros no ano passado não foi de 7%, como anunciavam os dados provisórios, mas de 15%. Um crescimento de dois dígitos como não se assistia há muito, que se deveu principalmente ao aumento da procura dos comboios urbanos. Por causa da introdução dos passes intermodais a custos reduzidos, cada vez mais pessoas passaram a usar o comboio para se deslocar das periferias das cidades até aos seus empregos. António Costa e Pedro Nuno Santos tiveram razão em Janeiro quando inauguraram a reabertura das oficinas da CP em Guifões, que permitiu aumentar sem igual a capacidade de renovação de material circulante e evitar supressões.
Mas a novidade mais importante foi a divulgação do número de passageiros servidos por Coimbra-A em 2018 – os últimos dados reportavam a 2010. Uma década de ignorância dos números deu azo às mais variadas especulações. A mais surpreendente, e largamente utilizada como motivo do encerramento, foi a de que “quase ninguém apanha o comboio nessa estação”. Hoje temos números e por isso podemos actualizar o rumo desejável das políticas. Coimbra-A teve 113 mil passageiros por mês, enquanto Coimbra-B teve apenas 125 mil. Por outras palavras, afinal Coimbra-A teve praticamente o mesmo número de passageiros que Coimbra-B.
Estes valores são muito semelhantes à tendência nacional e europeia, que demonstra que as estações que se localizam nos centros das cidades são as que têm maior movimento porque permitem aí chegar de forma directa, evitando transbordos. Apesar de Coimbra-A ter vindo a perder uma série de ligações importantes e de não ter qualquer comboio Intercidades ou Pendular, a verdade é que quase metade das pessoas continuou a preferir apanhar o comboio nesta estação. A sua localização central, aliada ao facto de ser o terminus de quase todos os comboios regionais e urbanos, são os factores que continuam a torná-la tão concorrida e relevante para o futuro.
Esta foi também a razão de escolha de um sistema de tram-train em 1994, que tinha como principal objectivo promover a interoperabilidade dos veículos sobre carris. Quer isto dizer que numa primeira fase o metro ligeiro circularia nos 40 km do Ramal da Lousã e respectivo troço urbano. Mais tarde, quando houvesse uma migração nacional de bitola, estes veículos mais ligeiros poderiam circular em toda a Rede de Urbanos e Regionais da Região de Coimbra (235 km). Acontece que, passados quase 30 anos do projecto inicial, já todos sabemos que a migração integral da bitola é afinal uma falsa questão. Como os autocarros ainda não conseguem circular sobre carris, perderam-se as duas maiores vantagens do projecto inicial: aproveitar a extensa rede já existente e trazê-la aos vários pólos da cidade.
Ora, mas se todos os dados indicam que a cada ano que passa a decisão de encerrar a estação se torna cada vez mais anacrónica, porque é que ainda não se reverteu a situação? A questão é antiga, complexa e impossível de esmiuçar num único artigo de jornal. Recordemo-nos que o projecto inicial é herdeiro dos anos 1990 – a década mais problemática da ferrovia –, em que se assistiu à maior queda do número de passageiros, à cisão da operação e infraestrutura e, claro, à crescente motorização da sociedade portuguesa. A solução inicial de metro ligeiro nunca foi consensual, mas desde então a falta de consenso foi ainda agravada pela bipolarização da discussão. De um lado, os que só aceitam uma solução ferroviária integral; do outro, os que dizem que apenas com metro-bus é possível concretizar o projecto inicial. O primeiro passo para ultrapassar o problema é abandonar esta insistente visão dicotómica.
Proposta
A coexistência dos dois meios de transporte em Coimbra-A é possível e reforça a interligação das várias redes existentes. A variante rodoviária da Av. Fernão de Magalhães já estava prevista em 2012 no plano da Área de Reabilitação Urbana desta zona. Esta via paralela ao rio pode agora ser utilizada em exclusivo pelo sistema de metro-bus, e tem a orientação ideal para se fazer a articulação com o serviço ferroviário e autocarros municipais (SMTUC).
O traçado proposto atravessa os terrenos dos antigos armazéns de mercadorias da Refer, o que não representa um problema maior uma vez que esta enorme parcela abandonada pertence hoje à Infraestruturas de Portugal, que é também a promotora do metro-bus. Como estes terrenos não têm qualquer função de transporte de passageiros, podem e devem ser já hoje alienados. Ambos os traçados, metro-bus e comboio, são compatíveis com os anteprojectos imobiliários previstos no plano. Uma parte das mais-valias geradas pela valorização dos terrenos, que vai permitir aos promotores imobiliários também usufruir de uma excelente rede de transportes regionais, deverá reverter a favor de todo o sistema de transportes. Esta é, aliás, prática habitual em países europeus como a Suíça, Bélgica ou Holanda. Todo este processo deverá ser participado, escrutinado e sujeito à discussão pública.
Esta é a proposta mais justa do ponto de vista social para todos os utilizadores de transportes públicos: além de conjugar as várias redes existentes, promove a sua interligação neste ponto nodal. A par desta medida, o preço dos passes intermodais deve ser alargado a toda a região. Não é admissível que, após quase dois anos de introdução do PART, um cidadão da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC) continue a pagar 80 ou 90 euros por um passe intermodal, enquanto nas Área Metropolitanas de Lisboa ou do Porto este passe tem um custo máximo de 40 euros.
Do ponto de vista ambiental, esta é também a proposta mais sensata. Os comboios que circulam diariamente nesta rede são todos eléctricos, de fabrico nacional e só agora estão a atingir o fim de vida útil. Apesar dos seus 45 anos de idade, a sua tecnologia está mais que testada e cumprem bem a sua função. Por outro lado, os autocarros do metro-bus vão ter um tempo de vida máximo de apenas “15 anos e as baterias de lítio metade desse valor”, revelou o presidente da Metro Mondego em Março ao PÚBLICO. Adoptar um sistema com estas características para restituir o transporte público à população do Ramal da Lousã, embora não seja a solução ideal, é bastante aceitável. Já fazê-lo para substituir uma via-férrea electrificada e de alta capacidade é inadmissível.
Esta proposta é também a que apresenta a distribuição mais equitativa do volume de passageiros. Cada comboio que chega a Coimbra-A tem uma lotação de 550 passageiros, que se distribuem logo ali a pé pela Baixa ou pela cidade através dos autocarros dos SMTUC – que têm nesta zona uma das maiores taxas de cobertura da rede. Obrigar todos estes passageiros a fazer um transbordo em Coimbra-B para um metro-bus com uma lotação máxima de 130 passageiros vai introduzir uma ruptura de carga a montante completamente desnecessária. Este problema só se tenderá a agravar no médio prazo, assim que os índices de procura voltarem a crescer a taxas de dois dígitos.
É urgente que a cidade, a região e a CP encarem a Rede de Urbanos e Regionais como um todo. Se é necessário material circulante novo, então devemos perguntar já ao Governo a que parte dos 129 comboios novos é que a região vai ter direito. Se as frequências e tempos de viagem podem ser mais satisfatórios, então devemos perguntar já à CP se é possível fazê-lo com o material recém-renovado. Se a população não conhece os serviços regionais de que dispõe, então a CIM-RC deve avançar já com uma campanha de divulgação da rede existente. Talvez baste chamar-lhe metro-train para que comece a receber a atenção merecida.
Manter o serviço ferroviário de Coimbra-A em articulação com o Sistema de Mobilidade do Mondego é possível, é desejável e é a solução que melhor responde às necessidades de transporte de Coimbra e da região centro, precisamente quando ela é tão necessária ao país.