Dura Covid, sed Covid
Partindo deste delírio legislativo, não será preciso muito para perspectivar a futura necessidade de os trabalhadores em funções públicas declararem, perante o zeloso superior hierárquico, o tipo e modelo de equipamento de que dispõem, instalando, sob o olhar atento daquele, a salvífica aplicação, a fim de se salvaguardarem do processo disciplinar que se lhes acena.
Nos estranhos tempos que correm, a Assembleia da República prepara-se para discutir a Proposta de Lei n.º 62/XIV, com a qual, entre o mais, se pretende determinar a obrigatoriedade de utilização da aplicação StayAway Covid em contexto laboral ou equiparado, escolar ou académico.
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Nos estranhos tempos que correm, a Assembleia da República prepara-se para discutir a Proposta de Lei n.º 62/XIV, com a qual, entre o mais, se pretende determinar a obrigatoriedade de utilização da aplicação StayAway Covid em contexto laboral ou equiparado, escolar ou académico.
A intenção em si, no que à generalidade dos cidadãos concerne, não encerra outra utilidade que não a de convidar à leitura de 1984, de George Orwell, e de, por aí, poder traduzir-se num contributo para a literacia nacional. No mais, e crendo que a ideia de Estado de direito não está já, entre nós, relegada ao estatuto de mero verbo de encher, afigura-se ser um nado-morto por esbarrar de frente com vários dos direitos fundamentais que a Constituição nos garante e, aliás, com os limites da consciência de quem não se limita a dizer sim porque lhe dizem que é assim.
O perigo da Proposta reside, na verdade, na circunstância de ali se anunciar um especial público-alvo – os trabalhadores em funções públicas –, e de, em ordem à salvação da maltratada honra do Convento, se correr o risco de vir a ser apenas sobre eles que vá recair a dita obrigação.
Afigura-se, porém, que esse especial âmbito de aplicação da lei resulta de uma visão anacrónica da Função Pública (e, com bondade, dir-se-á que é daí que decorre a utilização dos conceitos, já em desuso, de funcionário e agente...), que olha o trabalhador público como estando numa relação de sujeição, no fundo, numa situação de acentuada dependência relativamente ao Estado, caracterizada por especiais restrições ou compressões de direitos e de liberdades individuais.
A questão é que, pese embora a relação orgânica que mantém com o ente público, o trabalhador em funções públicas é hoje, indubitavelmente, titular de direitos subjectivos e aplicam-se-lhe, tal como aos demais trabalhadores, as regras gerais de limitação e de restrição de direitos fundamentais. Mais concretamente, há que observar, aí, os pressupostos constitucionais (a existência de um valor que justifique uma ordenação especial) e os limites constitucionalmente consagrados.
No caso da StayAway Covid não se vislumbra, porém, que valor justifica uma especial compressão de direitos dos trabalhadores em funções públicas, tanto mais que a obrigação de instalação (o que é de bradar aos céus) apenas impende sobre aqueles que disponham de equipamento que a permita. Ou seja, em rigor, o que justifica a imposição não é a especial condição de trabalhador público, mas, isso sim, a capacidade do equipamento de que este disponha.
Partindo deste delírio legislativo, não será preciso muito, pois, para perspectivar a futura necessidade de os trabalhadores em funções públicas declararem, perante o zeloso superior hierárquico, o tipo e modelo de equipamento de que dispõem, instalando, sob o olhar atento daquele, a salvífica aplicação, a fim de se salvaguardarem do processo disciplinar que se lhes acena.
Dura Covid, sed Covid, parece ser hoje o mantra oficial, a ponto de se atropelarem direitos e garantias que até agora tínhamos como certos.
Resta-nos esperar, como aquele moleiro da Prússia, que ainda haja juízes em Berlim.