João Paulo Cuenca, o David que enfrenta a fúria do Golias evangélico
Uma frase do escritor brasileiro motivou mais de cem processos judiciais movidos por pastores da IURD em todo o Brasil. Cuenca diz ser vítima de uma ofensiva coordenada para o calar.
A rotina do escritor brasileiro João Paulo Cuenca (Descobri que Estava Morto, Caminho) passou a ser a de acordar e saber quantos processos foram abertos contra si no dia anterior. Uma publicação sua no Twitter valeu-lhe uma avalanche de queixas apresentadas nas últimas semanas por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Acredita que, involuntariamente, foi atirado para a linha da frente da defesa da liberdade de expressão.
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A rotina do escritor brasileiro João Paulo Cuenca (Descobri que Estava Morto, Caminho) passou a ser a de acordar e saber quantos processos foram abertos contra si no dia anterior. Uma publicação sua no Twitter valeu-lhe uma avalanche de queixas apresentadas nas últimas semanas por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Acredita que, involuntariamente, foi atirado para a linha da frente da defesa da liberdade de expressão.
“O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal.” Foram estas as palavras, publicadas no Twitter a 16 de Junho, que, em poucos dias, viraram a vida de Cuenca do avesso. O tweet começou por servir de justificação para que a Deutsche Welle cortasse a coluna de opinião que o escritor e cineasta mantinha no site brasileira da empresa pública de radiodifusão alemã.
A empresa de comunicação emitiu um curto comunicado em que dava como terminada a colaboração e afirmava repudiar “qualquer tipo de discurso de ódio e incitação à violência”. Para Cuenca tratou-se de uma atitude “completamente imperdoável”. Ao PÚBLICO, o escritor diz não ter dúvidas de que a decisão da DW foi tomada “por pressão” do Governo brasileiro e, sobretudo, dos filhos do Presidente Jair Bolsonaro.
Mas o verdadeiro impacto daquelas palavras na vida de Cuenca seria sentido apenas alguns meses depois. O escritor começou a saber que vários pastores da IURD estavam a apresentar queixa contra si em diferentes tribunais espalhados pelo Brasil. O crescimento do número de processos assumiu um comportamento viral. De algumas dezenas, depressa ultrapassaram uma centena. Quando falou com o PÚBLICO, esta terça-feira, eram 129 os processos, em 19 dos 27 estados brasileiros.
As queixas – que pedem indemnizações que variam entre os dez mil e os 20 mil reais (1500 e três mil euros), num valor total superior a dois milhões de reais – foram apresentadas em juizados especiais cíveis, instâncias judiciais destinadas a resolver “pequenas causas” que obrigam à presença do acusado ou de algum representante legal. Ou seja, para responder a todas as acções judiciais que o citam, Cuenca ou o seu advogado teriam de se deslocar a mais de uma centena de tribunais espalhados por um país de dimensão continental.
O escritor está convicto de que se trata de um esforço coordenado pela igreja do bispo Edir Macedo. “São todos pastores da IURD, todos assinam com o próprio punho as queixas, que são muito parecidas, existem padrões e estão espalhados pelo Brasil inteiro”, diz Cuenca, acrescentando que todas as acções citam o comunicado da DW.
Igreja nega abuso
A IURD nega estar a coordenar os processos contra Cuenca, sublinhando que os pastores “têm autonomia para tomar as suas próprias decisões quanto à sua vida privada”, de acordo com um comunicado citado pela Folha de São Paulo.
Porém, na altura em que o tweet de Cuenca foi publicado, o site da igreja publicou um texto em que condenava a declaração e antecipava “consequências” para o escritor. “A própria lei brasileira, que estabelece o crime de vilipêndio religioso, pode servir como instrumento de acusação”, lembrava a IURD.
Cuenca faz notar que a sua frase “é uma paráfrase satírica de uma metáfora”, inspirada numa citação de Jean Meslier, um padre francês do século XVII que deixou escritos muito críticos contra a Igreja Católica: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre.” “Eles sabem que aquilo é uma metáfora e sabem muito bem que eu não estou a pedir o enforcamento de ninguém”, afirma o escritor.
A ofensiva judicial contra Cuenca não é inédita. Em 2007, a repórter da Folha de São Paulo Elvira Lobato foi alvo de mais de cem processos movidos por pastores evangélicos, depois de ter assinado uma investigação sobre os interesses empresariais da IURD. A jornalista venceu todas as acções, mas só o conseguiu com o apoio do jornal que teve de ajudar a pagar as suas deslocações e as despesas com advogados para responder a cada um dos processos.
A estratégia de Cuenca é tentar levar o caso para uma instância judicial superior onde possa criar jurisprudência com implicações futuras. “Interessa-me transformar isto num caso paradigmático sobre a liberdade de expressão e, especialmente, sobre o assédio processual”, afirma o escritor, que diz estar em contacto com um organismo internacional para lhe dar apoio. Cuenca recorre à metáfora de “David e Golias” para retratar a situação: “Eles têm essa máquina oleada e montada para fazer isso com qualquer pessoa que lhes desagrade amanhã.”