Eutanásia: o direito ao referendo
O referendo sobre a eutanásia não é um assunto de consciência: pelo contrário, é o pressuposto indispensável para que a liberdade de consciência se possa afirmar.
1. Só quem não escreve regularmente nos jornais é que não sabe o que é a síndrome da folha em branco, a pressão de não saber sobre que tema ou assunto escrever. Hoje não é um desses dias. Hoje eram muitos os temas sobre que teria gostado de escrever. A começar pelo assassinato bárbaro do professor francês Samuel Paty e as suas consequências. Gostava também de poder aprofundar as razões por que julgo perniciosa a obrigatoriedade da aplicação da StayAway Covid. Pensava ainda que seria oportuno discorrer sobre a defesa que tantos magistrados fazem de proceder à criminalização do enriquecimento ilícito. Merecia a pena, acrescento, voltar ao caso da interferência do governo Costa na designação do procurador europeu e de responder ao primeiro-ministro, que agora até já acha que “não tem idade” nem para ser escrutinado nem para ser criticado. Era importante voltar ao processo “Brexit” e da nossa relação futura – portuguesa e europeia – com o Reino Unido. Eis um leque de assuntos que mereceriam atenção cuidada. Optei, todavia, por falar sobre o referendo da eutanásia, que vai a votos na Assembleia da República, na próxima sexta-feira. É um tema demasiado importante para “ir a despacho” nas vésperas do Orçamento e para ser “despachado” na vertigem da segunda vaga da pandemia. Há quem o queira dissolver e diluir na miríade de assuntos que legitimamente ocupam o nosso quotidiano. Mas ele não é um tema diuturno nem banal. Ele não é do dia-a-dia, é do princípio e do fim. E como tal deve ser tratado e valorizado.
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1. Só quem não escreve regularmente nos jornais é que não sabe o que é a síndrome da folha em branco, a pressão de não saber sobre que tema ou assunto escrever. Hoje não é um desses dias. Hoje eram muitos os temas sobre que teria gostado de escrever. A começar pelo assassinato bárbaro do professor francês Samuel Paty e as suas consequências. Gostava também de poder aprofundar as razões por que julgo perniciosa a obrigatoriedade da aplicação da StayAway Covid. Pensava ainda que seria oportuno discorrer sobre a defesa que tantos magistrados fazem de proceder à criminalização do enriquecimento ilícito. Merecia a pena, acrescento, voltar ao caso da interferência do governo Costa na designação do procurador europeu e de responder ao primeiro-ministro, que agora até já acha que “não tem idade” nem para ser escrutinado nem para ser criticado. Era importante voltar ao processo “Brexit” e da nossa relação futura – portuguesa e europeia – com o Reino Unido. Eis um leque de assuntos que mereceriam atenção cuidada. Optei, todavia, por falar sobre o referendo da eutanásia, que vai a votos na Assembleia da República, na próxima sexta-feira. É um tema demasiado importante para “ir a despacho” nas vésperas do Orçamento e para ser “despachado” na vertigem da segunda vaga da pandemia. Há quem o queira dissolver e diluir na miríade de assuntos que legitimamente ocupam o nosso quotidiano. Mas ele não é um tema diuturno nem banal. Ele não é do dia-a-dia, é do princípio e do fim. E como tal deve ser tratado e valorizado.
2. A eutanásia é talvez a mais difícil das impropriamente chamadas questões fracturantes: ela atinge os valores e os limites da vida e da morte; ela convoca os fundamentos da liberdade, da consciência e da dignidade. Ela abala – e de que maneira – esses fundamentos. E, por isso, porque cuida dos fundamentos, em que tudo deve ser humanidade, não há lugar para fundamentalismos. Não deve haver ocasião para a apreciação sumária e cortante dos casos da vida, em que tudo está decidido, antes de estar terminado. O assunto é delicado, é profundo, é complexo. E diz respeito a cada um de nós e a todos nós, a nós todos.
3. Essa complexidade e profundidade é talvez ainda mais radical e radicada, porque vivemos numa sociedade que higienicamente baniu a morte e que quase a quer expurgar da ordem necessária e inalienável da condição humana e, já agora, dos ritos humanos. E não me reporto apenas às muito recentes correntes “trans-humanistas” ou ao “homo Deus” de Harari, que julgam poder contornar ou fintar a morte ou a condição mortal. Refiro-me antes a largas décadas de culto de uma sociedade que simplesmente deixou de integrar a morte – e até, antes dela, o sofrimento – no espaço e no tempo público e comunitário. E que, involuntária e inconscientemente, a relegou para compartimentos privados, tão discretos ou secretos quanto possível. As sociedades hodiernas, pelo menos, de matriz ocidental, levaram a cabo um processo de progressiva “privatização” da morte. Desenvolvemos correntes e práticas que visam esconder ou disfarçar a morte, atirando-a para os quartos assépticos de hospitais ou para unidades anónimas de doentes terminais. A ideia de estar presente na morte do outro tornou-se, para muitos, bizarra ou singular; a simples ida a um funeral mudou profundamente de significado humano, psicológico e social. Não se trata aqui de fazer qualquer censura ética ou de evocar uma qualquer idade do ouro, em que os humanos ainda não se tinham corrompido. Nada disso. Trata-se apenas de assinalar um dos motes do nosso tempo em que a “fuga à morte” passou a ser um modo de viver a morte. A adesão à legitimação da eutanásia voluntária activa é também um reflexo antropológico desta “atitude” societal. E é bem capaz de condensar afinal um afloramento de um desejo ancestral, humano e paradoxalmente religioso, de matar a morte. De a matar antes que ocorra.
4. Talvez a pandemia, como em tantas outras épocas, possa modificar as direcções deste processo societal. Ninguém sabe e é muito cedo para o saber. Mas não há dúvida que a fragilidade das nossas sociedades voltou a ser posta a nu, que a morte e o sofrimento regressaram ao cerne do espaço público, que as cadeias de solidariedade e de compaixão irromperam em força. Não é tema para este dia nem para este propósito. Mas merece, a seu tempo, que lhe dediquemos espaço e que o deixemos respirar. Não são apenas sanitárias, nem económicas, sociais ou políticas as implicações da pandemia. São seguramente, antes disso, antropológicas, filosóficas, mundividenciais. Qual será o nosso lugar e o lugar das nossas certezas e crenças depois da pandemia?
5. Vem a reflexão inicial a propósito justamente da bondade e da conveniência de um referendo sobre a legitimação da eutanásia. Já o disse e reitero: temos direito a um referendo sobre a eutanásia. Não apenas porque a morte não é um assunto privado; mas porque está em causa algo de fundamental para a sociedade, para a forma como a concebemos e compreendemos. Mais, está em jogo um corte ou uma ruptura com a concepção mundividencial até aqui dominante; corte ou ruptura que naturalmente carecem de uma validação social e cidadã de natureza singular. E se tais razões não colhessem, sempre valeriam argumentos pragmáticos da maior salubridade social e humana: a necessidade de uma discussão ampla e informada sobre um tema onde reina a maior das confusões conceituais e em que só um debate profundo pode trazer discernimento.
6. O voto a favor ou contra a “eutanásia” é uma questão de consciência. E o PSD, o meu partido, cultivou sempre a liberdade de consciência. Mas o referendo sobre a eutanásia não é um assunto de consciência: pelo contrário, é o pressuposto indispensável para que a liberdade de consciência se possa afirmar. E, por isso, o Grupo Parlamentar do PSD deve votar a favor do referendo, para que a mais ampla liberdade de consciência se possa exercer.
NÃO. Assassinato de Samuel Paty. A liberdade de expressão é um valor fundamental das sociedades ocidentais e das democracias; o terrorismo fundamentalista é execrável. Não podemos continuar indiferentes; não nos podemos resignar.
NÃO. Obrigatoriedade da StayAway Covid. Gera resistências contraproducentes; a aplicação está longe de se poder ter por eficaz; a sua imposição representa uma violação inaceitável dos direitos fundamentais. O que move António Costa?