Primeiro capítulo de Felicidade, o novo romance de João Tordo
Dividida em três actos, e com laivos de tragédia grega, esta é uma história de amor e assombração passada nos anos 70 que transformaram Portugal. O novo romance de João Tordo, Prémio José Saramago 2009, chega nesta terça-feira às livrarias numa edição Companhia das Letras. Aqui se publica o início do Primeiro Acto.
Talvez eu devesse contar-vos o que me aconteceu aos dezassete anos para que a minha presença neste cemitério faça sentido. As pessoas não frequentam cemitérios por gosto, e eu não sou excepção. Quero dizer, existirão alguns que se divertem em lugares destes, mas decerto sofrem de estranhas patologias. Ouvi falar de gente que gosta de fazer amor com cadáveres – se é que se pode chamar amor a uma coisa tão horrível: chama-se necrofilia, o desejo de reunião com um parceiro romântico morto. Veja-se, por exemplo, Periandro, o segundo tirano dos Coríntios, que assassinou a mulher num acesso de raiva e depois teve relações sexuais com o seu cadáver; ou os marinheiros que, em tempos remotos, transportavam defuntos de regresso a casa e, na viagem, se aproveitavam das carcaças inertes e cinzentas, o brilho da alma há muito sonegado aos olhos apagados. Li algures que, nas guerras entre os russos e o Império Otomano, os soldados violavam os cadáveres do inimigo; fiquei sem saber se eram os turcos ou os russos que mais contemplavam esta prática, mas aposto que eram os russos.
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Talvez eu devesse contar-vos o que me aconteceu aos dezassete anos para que a minha presença neste cemitério faça sentido. As pessoas não frequentam cemitérios por gosto, e eu não sou excepção. Quero dizer, existirão alguns que se divertem em lugares destes, mas decerto sofrem de estranhas patologias. Ouvi falar de gente que gosta de fazer amor com cadáveres – se é que se pode chamar amor a uma coisa tão horrível: chama-se necrofilia, o desejo de reunião com um parceiro romântico morto. Veja-se, por exemplo, Periandro, o segundo tirano dos Coríntios, que assassinou a mulher num acesso de raiva e depois teve relações sexuais com o seu cadáver; ou os marinheiros que, em tempos remotos, transportavam defuntos de regresso a casa e, na viagem, se aproveitavam das carcaças inertes e cinzentas, o brilho da alma há muito sonegado aos olhos apagados. Li algures que, nas guerras entre os russos e o Império Otomano, os soldados violavam os cadáveres do inimigo; fiquei sem saber se eram os turcos ou os russos que mais contemplavam esta prática, mas aposto que eram os russos.