Morreu Enzo Mari, um gigante do design italiano
O mestre italiano morreu aos 88 anos. Marxista, crítico do domínio do marketing sobre o design, um dos seus conceitos mais conhecidos, a auto-projectação, propunha que fossem os próprios utilizadores a montarem as peças de mobiliário que desenhou, numa lógica do-it-yourself.
“Ciao Enzo. Despedes-te como um gigante”. Foi com estas palavras que Stefano Boeri, presidente da Trienal de Milão, onde há poucos dias se inaugurou uma exposição dedicada ao mestre italiano, se despediu do designer Enzo Mari, que morreu esta segunda-feira naquela cidade aos 88 anos, anunciaram os jornais italianos.
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“Ciao Enzo. Despedes-te como um gigante”. Foi com estas palavras que Stefano Boeri, presidente da Trienal de Milão, onde há poucos dias se inaugurou uma exposição dedicada ao mestre italiano, se despediu do designer Enzo Mari, que morreu esta segunda-feira naquela cidade aos 88 anos, anunciaram os jornais italianos.
Enzo Mari foi um dos grandes designers de equipamento do século XX italiano, um dos seus principais mestres mas também um importante teórico, autor de peças que constam de vários museus de design em todo o mundo, como o célebre puzzle de madeira para crianças 16 Animais, que fez para a marca Danese logo no início da sua carreira de 60 anos. O designer ganhou vários prémios Compasso d’Oro — como o atribuído em 1979 à cadeira empilhável Delfina —, sendo um dos responsáveis pelo prestígio do design italiano no século XX.
Em 2011, numa entrevista ao PÚBLICO, quando esteve em Lisboa a convite da Experimenta Design, provocador como sempre, disse que era importante que os objectos não contassem mentiras e que partia para qualquer projecto com um nível de utopia de 100%: “Sou bom, porque estou acima do monte de lixo. Não fiz coisas muito complexas. São sempre coisas simples.”
Marxista, denunciou o domínio do marketing no design e pôs um martelo e pregos na mão do consumidor. Um dos seus conceitos mais conhecidos, a auto-projectação, parte da ideia de que é possível sensibilizar as pessoas para o design e de que estas podem aprender a construir um objecto sozinhas. “Quando estás a construir um móvel, tens de ter a certeza de que as juntas estão bem feitas. Se vão comprar uma mesa, verifiquem se a perna está bem fixa. É um primeiro passo... Esse é o objectivo da auto-projectação”, explicou na mesma entrevista ao PÚBLICO. “Eu trabalho para compreender, não para fazer. Isso é a coisa mais importante da minha vida. Toda a gente sabe o que é o design, mas na realidade ninguém sabe.”
Na prática, a auto-projectação é um conjunto de instruções para construir mobiliário de madeira que permite aos consumidores montarem e adaptarem tábuas às suas necessidades. Lançado em 1974, este conceito propôs 20 projectos de móveis, de camas a armários, passando por cadeiras, estantes ou mesas, numa lógica de design do-it-yourself. O calendário perpétuo Timor (1967), inspirado nos horários das estações de comboio, é outra das suas peças conhecidas, tal como as jarras Bambù, que têm a aparência de colunas em ruínas, ambas produzidas pela Danese.
Enfant terrible da profissão, sempre trabalhou na fronteira entre a arte e o design, e proclamou várias vezes a morte do design.
Design para cidadãos
Enzo Mari nasceu em Novara em 1932 e estudou na Academia de Belas-Artes de Brera, em Milão. Nos anos 50 começou por explorar a pintura, uma pesquisa que iria continuar com uma aparência de artes gráficas nos famosos cartazes com maçãs ou pêras, um trabalho sobre as formas naturais que intitulou Della Natura. Foi nesse âmbito que publicou uma dos seus livros mais conhecidos, A Maçã e a Borboleta, no seu título em português, uma obra sem palavras sobre a história da maçã e da lagarta.
Uma década depois, era um dos fundadores do movimento Nuova Tendenza, mostrando como os designers do pós-guerra, alguns vindos das artes plásticas e outros da arquitectura, tinham uma forte ligação às vanguardas, afirma o crítico e curador de design Frederico Duarte. “Mari é exemplo de um designer engajado politicamente, que acreditava no design como uma actividade que almeja a emancipação dos cidadãos, ou seja, que vai além de cumprir os desejos dos consumidores. Mas, à semelhança do inglês William Morris (1834-1896), da cubana-mexicana Clara Porset (1895-1981) e da italo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992), Mari, que como eles estava politicamente alinhado com o socialismo e o comunismo, morreu um designer desiludido, por ver que as suas ideias tinham sido ou mal compreendidas pela sociedade ou subvertidas pelo mercado.” Enzo Mari, acrescenta, acabou “cooptado pelo chamado mercado de design como mais um autor”.
Tal como o modelo da auto-projectação, o sofá-cama Day Night (1971) também desafia a ideia de estilo e vai ao encontro da sua preocupação de democratização do design. Se o primeiro foi um desastre comercial, o segundo, com a sua piscadela de olho ao consumidor activo, serviu com a sua proposta de partilha de conhecimento para repescar recentemente Enzo Mari, explica também Frederico Duarte. A sua presença na Experimenta Design foi um exemplo desse resgate.
A proximidade com a arte e o pensamento do século XX está patente na exposição que abriu este sábado na Triennale de Milão, com curadoria de Hans Ulrich Obrist, que já em Lisboa tinha sido o moderador da conversa com Enzo Mari. A mostra inclui instalações site-specific de artistas como Tacita Dean, Dominique Gonzalez-Foerster ou Danh Vō, bem como de outros designers.