Um passeio pela Rua das Flores, “um shopping artístico”
A Rua das Flores, no Porto, é um centro agregador de artistas. Apesar da pandemia, os turistas não a abandonaram por completo e a arte continua por ali a exibir-se.
A Rua das Flores nem sempre se encontrou assim, e Hugo Silva bem que o pode atestar. Há oito anos, a rua estava completamente “abandonada”. Agora um ponto turístico, nem a pandemia foi capaz de demover os turistas de a povoarem, no Verão e mesmo na entrada do Outono, mesmo que caminhem com a máscara a tapar-lhes a cara. Param para observar as montras das lojas, demoram-se nas esplanadas dos cafés e contemplam as paredes das ruas, forradas com o trabalho de artistas.
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A Rua das Flores nem sempre se encontrou assim, e Hugo Silva bem que o pode atestar. Há oito anos, a rua estava completamente “abandonada”. Agora um ponto turístico, nem a pandemia foi capaz de demover os turistas de a povoarem, no Verão e mesmo na entrada do Outono, mesmo que caminhem com a máscara a tapar-lhes a cara. Param para observar as montras das lojas, demoram-se nas esplanadas dos cafés e contemplam as paredes das ruas, forradas com o trabalho de artistas.
Hugo Silva foi o primeiro a chegar. No espaço de oito anos, passou de um desconhecido a uma presença obrigatória nas Flores. Ali vive, “é casa e trabalho”, comenta com um sorriso. Expõe discos de vinil pintados com graffiti numa parede. Inicialmente, Hugo pintava temas relativos à cidade, agora “virou-se para outra área”: caras de figuras públicas e personagens famosas. Natural de Santo Tirso, o artista cresceu na “cultura do hip-hop” e sempre fez experiências com o spray. Contudo, apesar da paixão pela street art, acabou a trabalhar nos CTT até um acidente o incapacitar. Na altura, só lhe pareceu haver uma solução: a rua.
“Se não fosse a rua, seria um artista morto”, afirma Hugo, que assistiu à transformação de uma das artérias mais obscuras da cidade num centro de arte e dinamismo. Mas não foi só a rua que ganhou vida, também Hugo ganhou um outro fulgor. Agora é famoso entre portuenses e turistas: “Há pessoas que vêm anualmente comprar”, conta, “Até mesmo o Rui Moreira já comprou”. Na sua perspectiva, os artistas de rua foram os responsáveis pelo rejuvenescimento da Rua das Flores que, para os turistas, é, na verdade, “a rua dos artistas”.
Talha dourada e fotografias
Vítor Costa marca presença há quatro anos na rua, com os seus desenhos da cidade do Porto, que brilham com o dourado. Começou a desenhar, por acaso, num dia em que passeava pela cidade. Foi aí que os olhares dos curiosos voltaram-se para o seu caderno.
De Porto Alegre, no Brasil, Vítor veio estudar arquitectura para o Porto em 1992. Em 2016, depois de um regresso ao seu país, “voltou a apaixonar-se” pela cidade que estava subitamente mudada graças ao “boom turístico” que viera ressuscitar as Flores. A conciliar a carreira de arquitecto com a vida nas ruas, Vítor procurou um “produto que fosse do Porto”, incluindo assim a talha dourada nos seus desenhos. “E depois também temos o trocadilho entre o rio ‘Douro’ e o ‘dourado’”, acrescenta. São muitos os turistas que, de manhã, passam pelos desenhos sem neles “repararem”, e, à tarde, regressam, identificando os locais que visitaram.
Também já desde 2016 nas ruas, Afonso Sereno, agora acompanhado de Tiago Lopes, expõe as suas fotografias numa parede. Afonso descobriu a fotografia na Guatemala, depois de abandonar a Engenharia Física, viajando ao encontro da sua irmã. Começou a fazer voluntariado numa associação e, como só tinha uma câmara fotográfica, foi-lhe incumbida a tarefa de fotografar o departamento de construção. A paixão acendeu-se aí. De volta ao Porto, estudou no Instituto Português de Fotografia e, por incentivo de um amigo, acabou por experimentar a Rua das Flores.
Estávamos no Verão de 2016 e Afonso expunha no chão, numa manta. “As pessoas paravam e as coisas foram evoluindo”. Quatro anos depois, ainda afixa as suas fotografias na rua quando pode. As Flores permitiram-lhe “fazer dinheiro para viajar e conhecer pessoas”, se bem que a Rua das Flores é já, por si, uma viagem por diferentes culturas. “Esse lado de expor na rua, do comércio” interessa-lhe particularmente, até porque chegou a vender artesanato com a irmã na Guatemala.
“É como se fosse um shopping artístico”, é assim que Afonso resume as Flores, um espaço onde os artistas já se conhecem e se cria uma “dinâmica” muito diferente de qualquer outra cidade, como Lisboa, que, segundo o fotógrafo, não tem nenhum “centro coeso de artistas”.
A história de Tiago é um pouco diferente. Depois de terminar uma licenciatura em Cinema, ingressou numa pós-graduação no Instituto Português de Fotografia. No percurso até lá, costumava passar por Afonso na Rua das Flores. “Um dia eu disse-lhe que ainda ia expor com ele”. E assim foi. No Verão passado, Tiago juntou-se ao amigo, e o stand ganhou novas fotografias. Para além das fotos a cores e a preto branco do Porto, os dois amigos expõem fotografias “mais autorais”, geralmente das suas viagens. Para o fotógrafo freelancer, a melhor parte de se estar na rua é “conseguir um feedback mais directo, mais cru”, bem como “a dinâmica entre as pessoas”.
Das viagens aos desenhos
De La Palma tem um chapéu na cabeça e veste um casaco que lhe chega aos pés. Os cabelos loiros, ondulados, emolduram-lhe a cara. À conversa, a artista francesa beberrica a meia-de-leite numa chávena ainda fumegante. No seu stand, encontramos retratos de aguarela, ilustrações de animais, linocuts, azulejos e uma combinação de aguarelas com flores.
O desenho surgiu durante uma época de viagens: “Em vez de escrever sobre as viagens, comecei a desenhar”. De La Palma, que nasceu na Bretanha, era fotógrafa até partir pelo mundo fora: Tailândia, Austrália, Índia e, finalmente… o Porto. Com o desenho, sentiu-se a atravessar um “processo de renascimento”, usando mesmo o francês "renaissance" para traduzir a sua renovação. “Podes mudar através de outra prática, consegues ser uma nova pessoa”, observa.
Ao chegar ao Porto, apaixonou-se pela cidade e pintou um mural, só para depois regressar à reviravolta das viagens. Desta vez, aterrou no Porto em Julho, mas não conta demorar-se. Em pouco tempo, estará em Paris, mas também não faz tenção de lá permanecer. Para onde vai? Ainda não sabe muito bem. “Pensei numa nova vida: num negócio com uma caravana, uma cabine fotográfica e uma loja de café. Até podia levar o meu cão comigo”, conta com entusiasmo.
KenJo está sentado junto às suas criações quando é abordado por um casal de franceses. Partilham a mesma língua, o que facilita a conversa. Estes seus desenhos começaram a ganhar vida nos últimos três anos, se bem que o desenho sempre fora um sonho de infância. Começou a viajar há oito: “Sentia-me preso na minha vida quotidiana, queria fazer algo de diferente”, depois de um ano a trabalhar numa empresa de manutenção. Voou de França até à Austrália, onde acabou por ficar dois anos. Quando regressou a casa, apercebeu-se de que não queria assentar. Partiu, uma vez mais, à aventura, descobrindo assim o seu estilo, inspirado por Myazaki e Moebius. Costuma vir para o Porto no Verão, mas durante o ano as viagens não cessam: este ano, esteve na América do Sul, em Espanha e na Suécia. Tal como De La Palma, o futuro é ainda uma incógnita: “Talvez Nova Zelândia… ou Itália”.
A Rua das Flores vive do rebuliço, alimenta-se da arte e das ligações que se formam pelas paredes. Todos os anos, há quem regresse, às vezes só para comprar uma obra de arte ou rever um artista que se tornou um amigo.
Texto editado por Ana Fernandes