Doenças crónicas e falhas na saúde pública “alimentaram” mortes por covid-19, alerta estudo na Lancet
As conclusões do estudo são do Global Burden of Disease Study (GBD), que envolve especialistas que trabalham em mais de 1100 universidades, centros de investigação e agências governamentais de 152 países.
A interacção da covid-19 com o aumento das doenças crónicas e factores de risco associados, como a obesidade e a poluição, nos últimos 30 anos, criou a tempestade perfeita para “alimentar” as mortes pelo novo coronavírus, defendem os cientistas.
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A interacção da covid-19 com o aumento das doenças crónicas e factores de risco associados, como a obesidade e a poluição, nos últimos 30 anos, criou a tempestade perfeita para “alimentar” as mortes pelo novo coronavírus, defendem os cientistas.
Num estudo publicado na revista médica The Lancet, os especialistas revelam que o aumento da exposição aos principais factores de risco (incluindo hipertensão, açúcar elevado no sangue e colesterol elevado), combinada com o crescimento das mortes por doenças cardiovasculares em alguns países, “sugere que o mundo pode estar a aproximar-se de um ponto de inflexão nos ganhos em esperança média de vida”.
As conclusões são do Global Burden of Disease Study (GBD), que envolve especialistas que trabalham em mais de 1100 universidades, centros de investigação e agências governamentais de 152 países e fornecem um novo olhar sobre como os países foram preparados em termos de saúde para a pandemia de covid-19 e estabelecem a verdadeira escala do desafio que representam as novas ameaças de pandemia.
O trabalho do GBD tem servido para suportar as políticas de saúde em diversos países, assim como para dar informação científica a organizações internacionais como o Banco Mundial ou a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os autores sublinham que a promessa de prevenção de doenças através de acções ou incentivos governamentais que levem a comportamentos mais saudáveis e ao acesso a recursos de saúde não está a ter os mesmos resultados em todo o mundo.
“A maioria dos factores de risco é evitável e tratável e enfrentá-los trará enormes benefícios sociais e económicos. Não estamos a conseguir mudar comportamentos prejudiciais à saúde, particularmente aqueles relacionados com a qualidade da dieta, ingestão calórica e actividade física, em parte devido à política inadequada de atenção e financiamento para saúde pública e pesquisa comportamental”, afirma Christopher Murray, da Universidade de Washington (EUA), que liderou o trabalho.
O estudo sublinha que vários factores de risco e doenças não transmissíveis, incluindo a obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, estão associados ao aumento do risco de doenças graves e morte por covid-19, e destaca a importância dos factores sociais para o resultado final.
“As doenças não interagem apenas biologicamente, elas também interagem com factores sociais. É preciso uma acção urgente para abordar a coexistência de doenças crónicas, desigualdades sociais e covid-19”, defende Murray, referindo-se à interacção de várias epidemias que exacerbam a carga de doenças em populações já sobrecarregadas e que aumentam sua vulnerabilidade.
Os autores frisam que há um reconhecimento tardio da importância do desenvolvimento social e económico para a saúde geral e apontam a necessidade de uma abordagem muito mais ampla, que preste mais atenção “a todos os impulsionadores da saúde da população”.
“Dado o impacto avassalador do desenvolvimento social e económico sobre o progresso da saúde, intensificar as políticas e estratégias que estimulam o crescimento económico, ampliam o acesso à educação e melhoram a condição das mulheres deve ser nossa prioridade colectiva”, diz Murray.
Segundo o estudo, embora a expectativa de vida saudável global – o número de anos que uma pessoa pode esperar viver de boa saúde – tenha aumentado continuamente (em mais de 6,5 anos) entre 1990 e 2019, não cresceu tanto quanto a expectativa de vida geral em 198 dos 204 países avaliados neste estudo e as pessoas estão a viver “mais anos com problemas de saúde”.
A deficiência, mais do que a morte precoce, tornou-se uma parcela cada vez maior da carga global de doenças, passando de 21% em 1990 para mais de um terço (34%) em 2019, destaca.
Em 11 países – incluindo Singapura, Islândia, Noruega, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia e Qatar – mais de metade de todas as perdas de saúde (medida por anos de vida ajustados com as deficiências, ou DALY, na sigla em inglês) devem-se a problemas causados por doenças não transmissíveis e lesões.
Os esforços globais de saúde para combater as doenças infecciosas e abordar os cuidados pré-natais tiveram sucesso na melhoria da saúde de crianças menores de dez anos nas últimas décadas (com a carga geral de doenças a cair cerca de 55%), “mas isso não foi igualado por uma resposta semelhante em grupos de idade mais avançada”, sublinham os especialistas.
Dez contribuintes para as perdas de saúde
Segundo o estudo, os dez principais contribuintes para o aumento das perdas de saúde em todo o mundo nos últimos 30 anos incluem seis causas que afectam amplamente os adultos mais velhos: doença cardíaca isquémica, diabetes, acidente vascular cerebral, doença renal crónica, cancro do pulmão e perda auditiva relacionada com a idade. Além disso, quatro causas são comuns desde a adolescência até a velhice: VIH/sida, os problemas musculoesqueléticos, dor lombar e distúrbios depressivos.
Os responsáveis lembram que o aumento de problemas de saúde “ameaçam sobrecarregar os sistemas de saúde mal equipados para lidar com as condições crónicas associadas ao crescimento e envelhecimento das populações”.
Indicam igualmente que, na última década, os países em desenvolvimento obtiveram “ganhos impressionantes na saúde”, em grande parte “como resultado de esforços bem-sucedidos contra doenças infecciosas, maternas e neonatais”, mas frisam que os sistemas de saúde destes países “não estão bem equipados para lidar com a crescente carga das doenças não transmissíveis – que subiu de cerca de um terço da carga geral de doenças em 1990 para quase dois terços em 2019”.
Além disso, destacam, “enquanto as mortes devido a doenças infecciosas caíram substancialmente nos países em desenvolvimento, as mortes por doenças não transmissíveis estão a aumentar”.
Em contraste, “as melhorias na saúde começaram a estagnar na maioria dos países desenvolvidos e até mesmo reverteram em vários países, particularmente nos Estados Unidos, onde a taxa de perda de saúde padronizada por idade aumentou quase 3% na última década”.
Os autores acreditam que as razões para essa falta de progresso podem incluir o aumento das taxas de obesidade, bem como a diminuição do potencial para reduzir o tabagismo e para fazer mais melhorias na cobertura dos tratamentos para hipertensão e colesterol alto, que serão necessárias para manter a redução das mortes por doenças cardiovasculares.
O coordenador do estudo lembra que, com uma população global que envelhece rapidamente, a “procura de serviços de saúde para lidar com problemas incapacitantes e condições crónicas, que aumentam com a idade, exigirão maiores níveis de financiamento, forte compromisso político, responsabilidade apoiada por melhores dados e um esforço global coordenado que dê prioridade aos mais vulneráveis”.
O estudo refere que durante a última década “houve aumentos particularmente grandes e preocupantes (mais de 0,5% ao ano em todo o mundo) na exposição a vários riscos altamente evitáveis” – obesidade, açúcar elevado no sangue, uso de álcool e uso de drogas –, que estão a contribuir para o peso crescente das doenças não transmissíveis.
“O maior impacto cumulativo na saúde vem do aumento notável dos riscos metabólicos (índice de massa corporal [IMC] elevado, níveis elevados de açúcar no sangue, hipertensão e colesterol alto), que subiram 1,5% ao ano desde 2010”, explicam os autores, sublinhando que entre os principais riscos de doenças não transmissíveis, apenas o tabagismo diminuiu substancialmente.
O estudo refere ainda que o impacto dos factores de risco também varia amplamente entre regiões. Em grande parte da América Latina, Ásia e Europa, a hipertensão, açúcar elevado no sangue, IMC alto e uso de tabaco são os que mais contribuem para problemas de saúde, enquanto na Oceânia os principais riscos são a desnutrição e a poluição do ar.
As diferenças mais marcantes estão na África subsariana, que é dominada pela desnutrição.
“Simplesmente fornecer informações sobre os malefícios desses riscos não é suficiente”, afirma a co-autora Emmanuela Gakidou, acrescentando: “Uma vez que as escolhas individuais são influenciadas por considerações financeiras, educação e disponibilidade de alternativas, os governos devem colaborar globalmente em iniciativas para tornar o comportamento mais saudável possível para todos.”
“E, tirando lições de décadas de controlo do tabagismo, quando há um grande risco para a saúde da população, como obesidade, pode ser necessária uma acção governamental concertada por meio de regulamentação, tributação e subsídios”, sublinha.
Num editorial que acompanha o estudo na revista The Lancet é ainda deixado o alerta: “A menos que as desigualdades estruturais enraizadas na sociedade sejam combatidas e que uma abordagem mais liberal às políticas de imigração seja adoptada, as comunidades não serão protegidas de futuros surtos infecciosos e a saúde da população não alcançará os ganhos que os defensores da saúde global buscam.”