A guerra de Putin e Assad em Idlib fez-se propositadamente contra os civis, diz Human Rights Watch
A campanha militar na região da Síria durou 11 meses e provocou 1,4 milhões de deslocados. Relatório da HRW centra-se em 46 ataques e conclui que são crimes de guerra e podem ser crimes contra a humanidade.
Doze instalações de cuidados de saúde, dez escolas, cinco mercados, quatro zonas residenciais, quatro campos de deslocados, duas áreas comerciais, uma prisão, uma igreja, um estádio… A guerra de 11 meses das forças enviadas por Vlamidir Putin e por Bashar al-Assad para reconquistar a região de Idlib, no Noroeste da Síria, entre Maio de 2019 e Março de 2020, visou deliberadamente alvos civis e matou centenas e centenas de sírios, arruinando famílias e forçando 1,4 milhões de pessoas a fugir.
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Doze instalações de cuidados de saúde, dez escolas, cinco mercados, quatro zonas residenciais, quatro campos de deslocados, duas áreas comerciais, uma prisão, uma igreja, um estádio… A guerra de 11 meses das forças enviadas por Vlamidir Putin e por Bashar al-Assad para reconquistar a região de Idlib, no Noroeste da Síria, entre Maio de 2019 e Março de 2020, visou deliberadamente alvos civis e matou centenas e centenas de sírios, arruinando famílias e forçando 1,4 milhões de pessoas a fugir.
“Os sucessivos ataques ilegais parecem ser parte de uma estratégia militar deliberada para destruir infra-estruturas civis e forçar a população a fugir, tornando mais fácil para o Governo sírio recuperar o controlo”, disse Kenneth Roth, director executivo da organização não-governamental Human Rights Watch, na apresentação do relatório “Apontando à vida em Idlib: Ataques Sírios e Russos contra Infra-estruturas Civis”, esta quinta-feira.
A ofensiva do Governo sírio e dos seus aliados russos foi lançada em Abril do ano passado para reconquistar a província de Idlib e as áreas em redor, uma das últimas regiões controladas por grupos da oposição. Ao longo dos 11 meses seguintes, a aliança sírio-russa “demonstrou um desrespeito impiedoso pelas vidas de cerca de três milhões de civis”.
Nas dezenas e dezenas de ataques contra “os locais onde as pessoas vivem, estudam e trabalham” foram usadas bombas de fragmentação e “bombas-barril” para maximizar o efeito mortífero. As primeiras têm uma área de alcance equivalente a um campo de futebol, são uma grande bomba com 650 mini bombas que podem não rebentar logo e são fáceis de confundir com rações alimentares ou brinquedos; uma bomba-barril, uma das armas preferidas do regime de Assad, é um exemplo dos chamados “explosivos-improvisados” e consiste num barril (barril de petróleo, garrafa de gás, tanques de combustível) cheio de explosivos e de fragmentos de metal (partes de maquinaria, rolamentos, pregos), que aumentam o efeito letal.
No conjunto, os bombardeamentos e ataques por terra mataram pelo menos 1600 civis.
Nas áreas visadas pelos 46 raides investigados para o relatório, uma pequena fracção dos alvos atacados, a ONG não encontrou quaisquer objectivos militares. Para além da análise de dezenas de imagens de satélite, mais de 550 fotografias e vídeos feitos nos locais atingidos, e registos de voos de observação, a Human Rights Watch entrevistou 100 sobreviventes, assim como pessoal médico, membros de equipas de resgate, autoridades locais e peritos com conhecimento profundo nos exércitos da Síria e da Rússia.
Fadel perdeu a mãe e quatro filhos
Fadel Faham vivia em Ariha, localidade no noroeste da província de Idlib. Lembra-se da manhã em que foi acordado pela mãe, que lhe pediu que fosse para o café da família. Era Verão e Fadel ainda se recorda da T-shirt que vestiu e de não ter dito adeus a dois dos seus filhos, de quatro e nove anos, que ainda dormiam quando saiu para trabalhar. Em casa ficou a mãe, a mulher e as cinco crianças.
Só voltou perto da hora de almoço, quando toda a gente em Ariha corria a tentar perceber o que é que a explosão que tinham ouvido atingira, e já não voltou a ver a sua casa de pé. O prédio de apartamentos com quatro andares foi um dos que desapareceu debaixo de bombas.
Fadel começou a escavar entre os destroços com outras pessoas que choravam e gritavam pelos familiares. Depois chegaram os Capacetes Brancos (voluntários da Defesa Civil Síria) e foi já com a sua ajuda que encontrou os corpos de três dos seus filhos e da sua mãe. Dois dos seus filhos, Zain, de nove de anos, e a filha Sahm, de quatro anos, uma das gémeas, foram resgatados com vida. A rapariga acabou por morrer dos ferimentos; só Zaim e a mulher de Fadel sobreviveram.
“Nunca vimos nada como as atrocidades que eles cometeram contra nós”, diz Fadel, num depoimento vídeo. Passou um ano do ataque em Ariha e Fadel, a mulher e Zaim são deslocados. Ele arranjou trabalho há pouco tempo como motorista de uma organização humanitária internacional. Já assistiu a muitos ataques nestes meses mas é aquele que lhe levou grande parte da família que ainda o atormenta – “o filho fala dos irmãos todos os dias, a sua mulher revive a dor da perda dos filhos diariamente, como se tivesse acontecido ontem”.
Apontar os responsáveis
Ayam Assad, que vivia em Idlib City, um dos quatro bairros visados por alguns dos 46 ataques, descreveu na altura o impacto dos raides aéreos: “Estávamos aterrorizados. Não me sentia seguro em casa nem no trabalho, especialmente por causa dos meus dois filhos que iam para a escola. Escolas, mercados, casas, hospitais, tudo é um alvo. Eles estão a alvejar a vida em Idlib”.
A ONG conclui que estes ataques “revelam repetidas violações das leis da guerra e são óbvios crimes de guerra, podendo chegar a ser crimes contra a humanidade”. Para além das vítimas, pelo menos 224 civis mortos e 561 feridos nos 46 ataques, todas as operações analisadas “tiveram prejudicaram seriamente os direitos das populações à saúde, educação e um nível adequado de vida, incluindo a alimentação, água e habitação”.
Ainda à espera da reposta às questões que enviou aos governos dos dois países, a Human Rights Watch identifica dez indivíduos que podem ser directamente responsabilizados ou que “sabiam destes abusos e não fizeram nada para travar” os crimes documentados, incluindo os presidentes sírio e russo, Assad e Putin.
Ajudar os sobreviventes
Tendo em conta o bloqueio existente sobre a Síria no Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia (e também a China) ameaça usar o seu direito de veto para travar qualquer resolução, a ONG defende que a Assembleia-Geral das Nações Unidas devia adoptar uma resolução onde pedisse aos seus membros para adoptarem sanções contra os civis e os comandantes militares implicados em crimes de guerra e crimes contra a humanidade, incluindo os citados neste documento. O princípio da jurisdição universal para estes crimes significa que qualquer governo interessado pode acusar judicialmente os suspeitos e impor-lhes sanções.
“São precisos esforços internacionais concertados para demonstrar que há consequências para estes ataques fora da lei, para impedir atrocidades futuras e mostrar que ninguém pode evitar ser responsabilizado, independentemente da sua posição ou patente”, afirmou Kenneth Roth. “Enquanto reinar a impunidade, assim reinará o espectro de novos ataques ilegais e do seu devastador custo humano”.
Lembrando que a vida continua insuportável para quem permaneceu em Idlib ou regressou depois do cessar-fogo negociado em Março, tal como para os que fugiram e continuam em campos de deslocados junto à Turquia, a Human Rights Watch diz que o Conselho de Segurança devia voltar a autorizar distribuições de ajuda através dos três postos fronteiriços por onde estas costumam chegar aos sírios no Noroeste e no Nordeste. Caso a Rússia vete a medida, caberia à Assembleia-Geral aprovar a distribuição de ajuda nas zonas que não estão sob controlo do Governo de Damasco.