Precários Inflexíveis: “O que vemos é que muita gente vai ser deixada para trás”
Daniel Carapau, dirigente da Associação Precários Inflexíveis, contesta o anúncio do Governo sobre o novo apoio extraordinário: há pessoas que vão ficar a receber menos do que agora recebem. Responde a João Leão e denuncia que ainda nenhum trabalhador informal recebeu a prestação criada em Julho.
Daniel Carapau é precário na Fundação Ciência e Tecnologia e um dos dirigentes da Associação Precários Inflexíveis e acusa o executivo de, com o Orçamento do Estado para 2021, abrir ainda mais a porta da precariedade no Estado. Pode ouvir a entrevista esta quinta-feira às 13h na Renascença.
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Daniel Carapau é precário na Fundação Ciência e Tecnologia e um dos dirigentes da Associação Precários Inflexíveis e acusa o executivo de, com o Orçamento do Estado para 2021, abrir ainda mais a porta da precariedade no Estado. Pode ouvir a entrevista esta quinta-feira às 13h na Renascença.
Os Precários Inflexíveis consideram que o OE 2021 fica aquém do necessário e que a nova prestação extraordinária pode significar para alguns trabalhadores apoios mais baixos do que aqueles que vigoram. Fazem no geral uma avaliação negativa deste apoio?
O novo apoio para 2021 seria destinado a um largo espectro de trabalhadores, como os por conta de outrem que ficam sem subsídio de desemprego até trabalhadores independentes e do serviço doméstico, que permitiria que as pessoas não tivessem rendimentos abaixo do limiar da pobreza. Foi assim que foi anunciado. Esse princípio era positivo e esperávamos que essa fosse a regra para todos os trabalhadores contemplados por este apoio. Mas com a redacção do OE percebemos que não é o caso. Existem três grupos de trabalhadores com regras diferentes no acesso à prestação e apenas um desses tem essa garantia do diferencial até ao limiar da pobreza, que são os dependentes que vão perder o subsídio de desemprego durante o ano de 2021. Os independentes não têm essa regra, a sua perda de rendimentos é coberta na totalidade ou em 50%. Este grupo vai ficar a perder em relação ao apoio que vigorou durante este ano e que até já tínhamos criticado por ser limitado. O apoio à redução de actividade, que foi sendo revisto ao longo do ano e que passou para um limiar mínimo de 219 euros, vai ter um limiar mínimo no próximo ano de 50 euros. Estamos perante um retrocesso, perante uma prestação pior no próximo ano. Também foi anunciado que a prestação duraria todo o ano de 2021, mas há pessoas que só terão direito a seis meses. A pergunta que se põe é como é que as pessoas vivem os outros seis meses do ano. Não percebo como é que se diz: “Não vamos deixar ninguém para trás.”
Disse o ministro das Finanças na apresentação do OE.
Gostávamos que essa frase fosse traduzida em medidas que concretizassem isso mesmo. Mas o que vemos é que muita gente vai ser deixada para trás, ou porque só vai receber seis meses de apoio, ou porque vai receber um valor menor.
Espera que seja possível na especialidade alterar o OE ou perante os retrocessos é um Orçamento que merece ser chumbado?
Não nos pronunciamos sobre como é que o Orçamento deve ser votado. Esperamos que no final se alcancem medidas que correspondam de facto às necessidades dos trabalhadores precários. Esperamos que o Governo tenha uma resposta mais sustentada, abrangente em relação aos trabalhadores precários que foram os que sofreram mais com a vaga de despedimentos. Não antevemos uma retoma da economia que vá ser suficiente para que todos voltem a ter emprego em 2021.
Então está a dizer que 2021 será um ano em que o Governo vai deixar para trás mais precários do que em 2020?
A certa altura do ano vai deixar muita gente para trás, porque muita gente só vai ter direito a seis meses de apoio. Esta regra vai valer tanto para os trabalhadores independentes como para os informais, em relação aos quais o Governo criou recentemente, no orçamento suplementar, uma prestação para que os informais viessem para o sistema de Segurança Social, para passarem a contribuir. E sobre este apoio criado em Julho ainda não houve pagamentos. As pessoas ainda estão à espera. Só foram abertas as inscrições pela Segurança Social em Setembro. Ainda não houve regulamentação. Chegam-nos relatos de que as pessoas continuam à espera de receber a prestação.
Em relação aos informais, tem noção se foi uma medida que levou muita gente a entrar no sistema?
Não sabemos, porque o Governo até agora ainda não divulgou esses números.
Para os precários, é melhor este OE tal como está, ou haver uma rejeição deste OE e o país viver uns tempos em duodécimos?
Não nos pronunciamos. Não temos de votar o OE. O que nos importa é que as necessidades tenham resposta. Ainda há tempo para o Governo se comprometer com aquilo que tem anunciado, que é não deixar ninguém para trás, haver um apoio que chegue a todas as pessoas que estão sem prestação social e que esse apoio garanta o limiar da pobreza e que o emprego seja protegido para que não continue a haver despedimentos de trabalhadores precários. O Governo tem uma medida extraordinária para as grandes empresas, têm de manter o nível de emprego, mas não é garantido que esse nível de emprego inclua os trabalhadores em outsourcing, em trabalho temporário. Esperamos que isso possa acontecer em 2021.
Este OE cria um programa de estágios na administração pública. Acredita que pode resolver problemas na administração pública, ou receia que seja mais uma forma de criar precariedade?
Receamos que seja uma forma de manter a precariedade na administração pública. A porta para essa precariedade nunca foi fechada, mesmo enquanto se esteve a regularizar os precários ao abrigo do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (Prevpap), que começou em 2017 e que ainda não está concluído. O Governo comprometeu-se a encerrá-lo até Outubro. Esperemos que seja desta vez. Sobre os estágios não faz sentido que ao mesmo tempo que se está a regularizar precários, alguns deles estagiários, se esteja agora a criar novos programas de estágios. Se houver uma situação de emergência, que requeira aumento temporário de pessoal, pode-se recorrer aos contratos a termo. Estamos totalmente contra que o Estado recorra a esses mecanismos, quando tem de dar o exemplo e continuar a regularizar os precários que tem.
Quantos precários do Prevpap ainda não foram integrados?
Não temos esses números. As comissões de avaliação têm de publicar quantos precários foram recomendados para regularização, mas depois, apesar de os concursos serem publicados online, não há um relatório sobre quantos contratos foram celebrados. No sector empresarial do Estado, não há necessidade de concurso; há uma regularização imediata, quando é reconhecida essa necessidade. Não há dados fiáveis dos números de integrações e era importante saber se o programa realmente cumpriu o objectivo. Sabemos que muitas pessoas tiveram um parecer negativo, muitas delas com argumentos que não cumprem os critérios definidos na lei.
Que argumentos?
Pessoas que trabalham para entidades que foram consideradas não sendo do perímetro do sector público, sejam IPSS que são contratadas pelo Estado para esse serviço, seja associações criadas pelas universidades para fazer investigação, vários tipos de organismos que são financiados exclusivamente por fundos públicos.
Com este novo programa de estágios, será interminável o programa de regularização de precários?
É isso que temos assinalado. O Prevpap foi muito importante, mas, se não houver mecanismos de controlar novas contratações com vínculos precários, então este problema vai ser sempre recorrente. O Governo tem de ter um programa para isso. Nós estamos a preparar um programa de emergência à crise e na parte da administração pública propomos um acompanhamento permanente dos vínculos precários no Estado.
Uma promessa inscrita no OE é a substituição na área da saúde da subcontratação e do recurso a empresas de trabalho temporário. Acredita que é possível acabar com a subcontratação na saúde?
Tal como noutros sectores do Estado, tem de ser trabalhada de forma consistente e ao longo do tempo para se reduzir o recurso a este tipo de contratações. O trabalho temporário é outra forma de precariedade que se foi instalando ao longo do tempo e já abrange cerca de 100 mil trabalhadores. Tem de haver uma limitação muito mais forte.
Os Precários Inflexíveis têm muitos associados da área da saúde?
Temos associados de muitos sectores. Temos uma pessoa na nossa direcção que é médica, mas a nível estatístico não temos esses dados.
Quando diz que é preciso pôr mais limites ao trabalho temporário está a falar de quê? Não receia que maior limitação do trabalho temporário signifique menos trabalho e portanto mais desemprego?
O regime de trabalho temporário nem devia existir, porque já existe a contratação a termo. Não se podendo acabar com ele no imediato, defendemos um número limite de renovações. O Governo já anunciou a intenção de fazer isso e esperamos que seja concretizado. Não está no documento do OE. Esses trabalhadores têm menos direito do que [aqueles que estão] a termo, porque têm contratos de mais curta duração, podem ser renovados mais vezes do que os a termo. Enquanto a precariedade for estrutural e tiver estas múltiplas formas, sempre que houver uma crise económica, os precários vão ser os primeiros a ser afectados, como foram este ano, e nunca resolveremos o problema de fundo, que é haver centenas de milhares de pessoas que de um dia para o outro ficam sem protecção social. Esperávamos que o Governo tirasse agora as lições, para que em 2021 isso não se repita. As medidas similares ao layoff não podem durar para sempre. O Governo tem de ter medidas que até agora não teve para impedir que haja vagas de despedimento, sobretudo dos trabalhadores precários. Os trabalhadores abrangidos pelo layoff felizmente estão protegidos enquanto as empresas recorrem ao layoff. Agora, essas medidas de apoio ao emprego têm de ter uma restrição de despedimentos muito mais ampla. Os apoios públicos não podem ser dados ao mesmo tempo que as empresas estão a despedir quer sejam trabalhadores a recibos verdes, quer sejam em outsourcing.
O Bloco de Esquerda quer que os estafetas e outros trabalhadores de plataformas digitais, como os que distribuem comida, tenham de ter contrato de trabalho. E a licença das empresas deve ficar sujeita a essa regra. Parece-lhe uma boa solução? Ou pode vir a remeter para a ilegalidade o trabalho informal?
Em relação às plataformas, o princípio é que deve haver uma relação de trabalho, independente, prestação de serviços ou não, que actualmente não existe. Cabe ao Governo apresentar a proposta que, no seu programa de governo, disse que ia apresentar. Com a pandemia, essa necessidade tornou-se mais premente, porque muitas plataformas aumentaram a sua actividade. Propomos, por exemplo, que a ACT controle como é que estas plataformas estão a empregar as pessoas e tem de haver um mínimo de contratos de trabalho. Não é normal uma empresa ter uma facturação enorme em Portugal e ter zero trabalhadores.
Qual a ligação dos Precários Inflexíveis com o Bloco de Esquerda?
A nossa luta é independente.
A seu ver, qual é o partido que mais se preocupa com os trabalhadores precários?
Não nos cabe a nós fazer essa avaliação.
Sente que têm algum tipo de voz ou representatividade na Concertação Social?
Isso é uma questão relevante que devia ser melhorada. Gostávamos que as confederações sindicais se pronunciassem mais vezes sobre as situações dos trabalhadores precários, que fosse uma prioridade mais vincada.
O mundo sindical não se adaptou aos novos modos de trabalho?
É uma evolução que está a tornar-se cada vez mais rápida e muito difícil de acompanhar. Esta tendência para o trabalho digital e para o teletrabalho dificulta ainda mais a organização dos trabalhadores.
É arcaica a nossa organização sindical? Em comparação com outros países?
Depende muito dos casos. Se calhar devia haver mais posições comuns, o que em Portugal parece sempre uma coisa absolutamente impensável. Mas em todos os países o movimento sindical tem dificuldade em acompanhar todas estas mudanças e tendências novas do trabalho. E do lado das empresas há um esforço maior em ter trabalhadores que não estão dentro de uma relação laboral, porque isso lhes convém. Há um dever do Estado em minimizar essas situações que estão fora da lei e em limitar todos os alçapões que existem na lei para as contratações precárias. O Estado e a ACT têm um papel muito importante nisso que não têm cabalmente cumprido.